Bruna Linzmeyer: "Ser sapatão me faz uma mulher mais alegre e mais feliz"
28/08/2025 10h45Fonte Revista Quem
Imagem: Maria Magalhães
Bruna Linzmeyer

Bruna Linzmeyer nasceu em 1992 e não viveu a epidemia de Aids do Brasil na década de 1980. Mas, a partir do domingo (31), poderá ser vista na minissérie Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente, da HBO, como uma comissária de bordo, Lea, que representa um grupo importantíssimo à época: os trabalhadores da aviação que contrabandearam para o Brasil o AZT, medicamento antirretroviral necessário para pacientes com HIV.
“A Lea é a única personagem que entra no esquema de contrabando, não para trazer para ela mesma ou para um filho, mas porque é o certo a ser feito”, diz Bruna, de 32 anos. “Ela arrisca a vida, a carreira, é pega pela Polícia Federal, porque as pessoas estão morrendo. Lea é o ponto de conexão com o público do quanto a gente pode se envolver e desobedecer algumas ordens, algumas leis, para salvar vidas, porque nem sempre as leis estão completamente prontas para proteger a gente”, afirma a atriz, que em cena contracena com Johnny Massaro, Ícaro Silva e Júlio Machado.
Parte ela mesma da comunidade LGBTQUIAPN+, Bruna tem no currículo desde novelões como Amor à Vida e Pantanal a curtas e filmes independentes, alguns com temática queer, um tema caro à atriz. No começo do ano, foi homenageada na Mostra de Cinema de Tiradentes, na presença dos pais e de sua “família LGBT”, em um marco também dos 15 anos de uma carreira que ela não pensava em seguir.
“Sou uma menina da roça, do interior, de uma cidade de dez mil habitantes. “Meu pai trabalhava em fábrica, minha mãe era secretária, parte da minha família planta banana até hoje. Jamais imaginei que eu ia trabalhar na televisão”, conta ela, que nasceu e cresceu em Corupá, município de Santa Catarina a 200 quilômetros de Florianópolis. “O meu objetivo não era ser artista, era pagar as minhas contas e viver fora de lá”, lembra.
Finalista de um concurso de beleza, se mudou para São Paulo para ser modelo e foi fazer teatro para combater a timidez. Fez um teste para a Globo e estreou em 2010 na minissérie Afinal, o Que Querem as Mulheres, engrenando a novela Insensato Coração no ano seguinte. “Fiz esse trânsito entre o mundo mais comercial da televisão e da publicidade, e o cinema independente, de curta-metragem. Sou muito orgulhosa e muito feliz com essa trajetória. Não é fácil ser artista. A maioria dos atores no Brasil não tem a condição que eu tenho”, diz.
“Tem aí algum privilégio da minha cor, mas tem também um bocado de trabalho para chegar até aqui para continuar ganhando dinheiro. Ganhar dinheiro é importante para mim, porque se eu não ganhar, se eu não pagar minhas contas, meu pai e minha mãe não têm dinheiro para pagar, não”, explica Bruna, que tem entre suas primeiras conquistas materiais “poder sentar no restaurante e escolher pelo que eu quero comer e não pelo valor da comida”.
Bruna namora com Kin Saito, diretora de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol Feminino. Quando se assumiu como mulher lésbica, em 2015, a atriz teve o acolhimento dos pais, mas não de todo o mercado. "Eu poderia ter muito mais dinheiro e ter muito mais trabalho se eu não fosse sapatão e se eu não falasse sobre o assunto. Isso é real. Todas as escolhas que fazemos trazem decisões, abrem e fecham portas, e essa é uma delas", diz.
"Mas a segurança que eu tenho comigo mesma, o conforto e a alegria que eu tenho de ser fiel a mim mesma, aos meus desejos, às coisas que eu acredito, o acolhimento e a alegria que eu encontro pertencendo à comunidade LGBT, tudo isso não tem preço para mim", frisa a atriz, que faz questão de dizer que é uma mulher sapatão.
"Eu me identifico muito com a palavra sapatão, gosto dela. Mas tem outras boas também: fancha é uma que é pouco usada; lésbica também; boiola tem gente que usa. Eu gosto de sapatão, sou sapatão, sou lésbica, sou queer", afirma Bruna, que tem uma lista de projetos para os próximos meses, como o curta Sandra- Roque, que está pronto, assim como o longa de terror Virtuosas, além de um filme que fará na Suécia com Guilherme Weber. Há ainda Corupá. "Mas esse ainda demora", brinca.
Você nasceu em 1992. O que sabia sobre a epidemia de Aids no Brasil na década de 80?
A gente que nasceu ali começo dos anos 90 foi impactado por uma memória recente desse momento muito sombrio e traumático da nossa história. Eu sabia um pouco, mas aprendi muitas coisas também ao longo do caminho.
Por exemplo?
Tivemos uma consultora na série, a doutora Márcia Rachid, uma médica infectologista, ativista, autora de um livro maravilhoso chamado Sentença de Vida. Ela é uma referência desde aquela época, era das poucas pessoas que aceitava tratar quem estava vivendo com HIV ou adoecido de Aids, quando os hospitais se recusavam a receber as pessoas, quando os planos de saúde se recusavam a tratar as pessoas. E ela conta relatos muito impactantes, fala eu tenho pacientes vivos até hoje, porque eles receberam AZT contrabandeado pelos comissários de bordo nos anos 80. Isso é muito emocionante.
Conheceu pessoas que viveram aquela época?
Encontrar essas personagens na vida real, que de alguma maneira me impactam, faz parte da forma como trabalho. Na coletiva de imprensa que tivemos no Festival de Gramado, um senhor sentou na primeira fila às 10 da manhã de um domingo e chorava compulsivamente. Ele chorou a coletiva inteira, ninguém entendeu nada. Aí no final falou vocês contaram minha história, estou vivo hoje porque tomei AZT contrabandeado por comissários de bordo. Perdi um grande amor da minha vida que já estava muito adoecido de Aids naquele momento. O AZT não conseguiu salvar ele, mas o AZT me salvou. Obrigada por contar essa história".
E comissários que contrabandearam o AZT, como sua personagem?
Conversei com algumas comissárias desses anos dourados da aviação, e uma delas foi na minha casa com seu uniforme original da Varig anos 80. Ela me ensinou a fazer todos os laços de pescoço que faziam, me contou o prazer que tinha em antecipar as necessidades dos passageiros. É um serviço, uma doação e você encontra o seu bem-estar através do bem-estar do outro.
"Nem sempre as leis estão completamente prontas para proteger a gente. Às vezes precisamos alterar essas leis em comunidade"
A Lea é assim?
Sim, ela se doa no trabalho, se doa para ajudar o melhor amigo, para ajudar a causa. É a única personagem que entra no esquema de contrabando do AZT, não para trazer para ela mesma ou para um filho, mas porque é o certo a ser feito. Lea arrisca o trabalho, a vida, a carreira, é pega pela Polícia Federal, porque as pessoas estão morrendo, e esse é o certo ser feito. Ela é ponto de conexão com o público de uma certa empatia, do quanto a gente pode se envolver e desobedecer às vezes algumas ordens, algumas leis, para salvar vidas, porque nem sempre as leis estão completamente prontas para proteger a gente. Às vezes precisamos alterar essas leis em comunidade.
Você já usava nomenclaturas e expressões corretas como “viver com HIV” e “adoecido com Aids”, ou foi algo que aprendeu com a série?
Eu tinha esse conhecimento, mas não era tão consciente de que isso é o correto. Eu tenho uma percepção [sobre o tema] porque conheço pessoas que vivem com HIV. A comunidade LGBT é mais informada e mais unida sobre essa situação, até porque as campanhas de informação acabam que, também por um estigma, atingem mais a comunidade LGBT. PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV) e PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV) eu conhecia, mas por causa dos meus amigos gays. Muitas mulheres heterossexuais não sabem nem que existe um tratamento preventivo de graça, que você toma um comprimido por dia para não contrair o vírus. Quando a gente olha para o comecinho da epidemia de HIV/ Aids no Brasil nos anos 80 e 90 até hoje, a tivemos um avanço científico imenso. Hoje quem vive com HIV tem a mesma expectativa de vida de uma pessoa que não convive com o vírus. Uma pessoa que vive com HIV em tratamento, ela não transmite mais o vírus, ela pode chegar a esse momento. Uma mulher grávida pode não transmitir o vírus para o seu bebê. Todos os tratamentos são completamente gratuitos pelo SUS. O Brasil é o único país do mundo que oferece tudo gratuitamente.
Você acredita que a série pode, por exemplo, conscientizar jovens que estão começando a vida sexual agora a adotar medidas de prevenção ao HIV/Aids?
Os jovens se arriscam, é uma característica de uma população extremamente jovem. Quando se fala de HIV, se fala PrEP e PEP, mas isso não protege de todas as outras ISTs (Infecção Sexualmente Transmissível), o que protege é ou a camisinha ou exames regulares e conversar com os seus parceiros de como estão seus exames? A gente precisa conversar sobre sexo também. De maneira geral, acho que a série pode provocar uma consciência maior sobre como a gente se cuida individualmente e como a gente se cuida em coletivo. Estamos falando de um vírus que se espalha através uns dos outros, então é um cuidado coletivo, igual à época da Covid. É um cuidado em rede.
Mas apesar de a série falar sobre um tema muito denso e um tempo muito traumático, para a qual a gente olha muito pouco, tem uma leveza e tem uma alegria, que é muito característica da comunidade LGBT. É sobre vida. Essas personagens têm muita sede de vida e o que elas fazem com essa dor é uma rede de solidariedade, uma rede de afeto, uma rede que muda o curso da história. O governo brasileiro não tinha a permissão para usar o AZT e hoje a gente é referência do tratamento de HIV/Aids. Isso foi uma luta popular que aconteceu naquela época, e manter os nossos direitos é uma luta constante. Hoje, se temos um avanço científico imenso, mas o preconceito não mudou nada. Hoje, se dez mil pessoas ainda morrem por ano novo, só no Brasil de Aids, é por preconceito e desinformação. As pessoas têm culpa, têm vergonha. Isso é uma condição crônica, assim como pressão alta e diabetes. Existe a vergonha de dizer que se vive com HIV. É um estigma que a gente carrega, 35 anos se passaram e não mudou.
A minissérie conversa com seu ativismo junto à comunidade LGBTQUIAPN+. Foi uma das razões para aceitar o papel?
Enquanto é cidadã brasileira fico muito orgulhosa de ter feito essa série, enquanto trabalhadora do audiovisual. É uma temática que me emociona muito. Sim, essa rede de solidariedade, acolhimento, essa coletividade, é uma estrutura muito queer, muito LGBT, de como a gente consegue lidar com o mundo, com as nossas dores em coletivo, com alegria, se divertindo. A série tem uma ousadia de linguagem de falar dessa temática com alegria.
Máscaras de Oxigênio não Cairão Automaticamente passou pelo Festival de Berlim, esteve em Gramado e será exibida em uma plataforma mundial. Tem vontade de expandir sua carreira para o exterior?
Nos últimos oito anos, todos os anos eu viajei para algum festival internacional com algum filme meu. Fico pensando se isso já não é uma carreira internacional, porque meu trabalho já está por aí pelo mundo. Se você me pergunta especificamente se eu tenho vontade de atuar em outra língua, em outro país, com diretores que não sejam brasileiros, em produções que não sejam brasileiras, se acontecer, vou ficar muito feliz, obviamente. Tem muita coisa que quero fazer aqui. Tenho um compromisso muito brasileiro e latino-americano cinematograficamente falando.
Você já tem 15 anos de carreira. As coisas saíram como você queria?
Saíram muito melhor do que eu queria.
Você não acreditava que ia dar tão certo?
Amor, eu sou uma menina da roça, do interior, de uma cidade de dez mil habitantes. Meu pai trabalhava em fábrica, minha mãe era secretária, parte da minha família planta banana até hoje. Jamais imaginei que eu ia trabalhar na televisão. O meu objetivo não era ser atriz, nem ser artista, não tem nenhum artista na minha família. O meu objetivo era pagar as minhas contas e viver fora de Corupá. Eu queria ir embora daquela cidade, queria, ganhar dinheiro, e ganhar dinheiro significava ter autonomia enquanto pessoa sozinha no mundo.
"Sou uma menina da roça. Meu pai trabalhava em fábrica, minha mãe era secretária, parte da minha família planta banana até hoje. Jamais imaginei que eu ia trabalhar na televisão”
E conseguiu.
Eu consegui de um jeito muito espetaculoso, porque não é fácil ser artista. A maioria dos atores no Brasil não tem a condição que eu tenho. Tem aí algum privilégio da minha cor, da minha beleza, tudo isso ajudou, mas tem também um bocado de trabalho para chegar até aqui para continuar ganhando dinheiro. Ganhar dinheiro é importante para mim, porque se eu não ganhar, se eu não pagar minhas contas, meu pai e minha mãe não têm dinheiro para pagar, não.
Você ajuda sua família até hoje?
Eu ajudo minha avó, especificamente, e os meus pais em momentos pontuais. Hoje em dia eles são aposentados, então a vida está mais tranquila. Mas vira e mexe, [ajudo] sim. Pensando nesse desejo inicial, de conseguir pagar as minhas contas e morar em algum lugar fora de Corupá, conforme eu fui desejando coisas mais específicas, fiz esse trânsito entre o mundo mais comercial da televisão e da publicidade, e o cinema independente, de curta-metragem. Faço muito primeiro filme de diretoras, é um trânsito de extremos. Sou muito orgulhosa e muito feliz com essa trajetória.
Você saiu de Curopá para ser modelo em São Paulo. Por que foi fazer teatro?
Eu fui fazer teatro porque eu era muito tímida – ainda sou. O pessoal da agência falou Bruna, era bom você fazer umas aulas de teatro para ficar um pouco mais desenvolta. Eu adorava fazer teatro, mas não achava que seria uma carreira. Comecei a olhar diferente primeiro quando comecei a ganhar dinheiro, que era uma questão muito importante para mim. Não adiantava eu me apaixonar por uma coisa, porque se ela não fosse pagar as minhas contas, eu teriar que voltar para Curopá, e lá não ia ter teatro.mNo momento que eu fui para a Globo e ganhei meu primeiro salário, pensei ok, acho que existe um caminho. E minha primeira produção, Afinal, o Que Querem as Mulheres?, tinha muito ensaio, muita construção de personagem, aula de canto, aula de comédia dell”arte. Foi uma formação para mim do que seria o meu modo de trabalhar: alguém que gosta de ensaiar, de pesquisar, de encontrar onde estão essas personagens na vida real.
Corupá tinha teatro?
Tinha muito pouco e não era um caminho. Eu sou muito apaixonada por pessoas, adoro conversar, ouvir histórias. No fundo, meu trabalho é sobre proporcionar que as pessoas se identifiquem, se emocionem. Quando eu era criança e adolescente, eu tinha dois sonhos: um era ser veterinária, e o outro estudar psicologia e trabalhar com pesquisa de comportamento humano. É o que eu faço. O ofício da atuação não acontece só nos ensaios, nas filmagens. É um jeito de olhar para o mundo, de escutar as pessoas, de se descolar às vezes de um julgamento ético, moral e entender [o outro].
Tinha medo de não dar certo?
É um medo que eu carrego até hoje. É um receio instintivo porque, realmente, se eu não bancar a minha vida, não vai ter quem banque. É um exercício constante de me lembrar puxa, Bruna, você tem 15 anos de carreira, não vai te faltar trabalho. Talvez tenha momentos de mais escassez, momentos de mais abundância, porque faz parte da carreira, mas é um diálogo constante que eu tenho comigo, porque em algum lugar em mim existe um pavor de que eu não vou ter dinheiro para pagar minhas contas e vou ter que voltar para Coripá, que é o medo que eu tinha com 15 anos. Mas apesar do medo, eu sou uma pessoa de muita fé, eu tenho muita fé.
De que maneira?
Eu acredito muito no poder da vida. Sempre tive fé de que eu ia achar um caminho, de que as coisas iam se se colocar para mim, e eu ia conseguir alcançar. Eu tenho fé nas relações que eu construí, de que eu não estou só nesse caminho, de que eu tenho parceiros de trabalho, de que eu tenho amizades, de que eu tenho família, de que emocionalmente eu não estou sozinha.
"É uma sensação muito agradável poder sentar no restaurante e escolher pelo que eu quero comer e não pelo valor da comida. E é uma sensação que eu carrego até hoje, que é de muita alegria"
Qual foi a primeira realização material que deu a você a certeza de que estava no caminho certo?
Poder ir ao mercado sem ficar contando todas as coisas que eu ia comprar, sem ter que fazer contas do tipo posso comprar esse arroz, esse biscoito. É uma sensação muito agradável poder sentar no restaurante e escolher pelo que eu quero comer e não pelo valor da comida. E é uma sensação que eu carrego até hoje, que é de muita alegria.
Em 2015, você assumiu ser parte da comunidade LGBTQUIPAN+. Teve medo de isso afetasse a sua carreira, as oportunidades de trabalho, ou já estávamos avançando ali?
O mundo estava fazendo uma curva em 2015, e eu fiz essa curva junto com ele. Muita coisa mudou de lá para cá. Acho que sou uma das agentes dessa mudança, que muita gente veio antes de mim proporcionou que em 2015 eu pudesse olhar e falar eu não quero me esconder, eu não posso me esconder, não vou me esconder. Teve trabalho de muita gente antes para que eu pudesse tomar essa decisão com um pouco mais de segurança em 2015. Eu poderia ter muito mais dinheiro e ter muito mais trabalho se eu não fosse sapatão e se eu não falasse sobre o assunto. Isso é real.
"O conforto e a alegria que eu tenho de ser fiel a mim mesma, o acolhimento que eu encontro pertencendo à comunidade LGBT, tudo isso não tem preço para mim"
Existe um apagamento?
Não, existe uma normatização da sociedade em geral. Tudo que é mais normativo se encaixa melhor nos padrões, flui melhor. Você fazer desvios pelo caminho, é mais tortuoso, mas ao mesmo tempo eu acho mais divertido também, porque eu posso ver coisas diferentes se eu abrir uma picada no meio do mato em vez de ir pelo que já está cimentado. Todas as escolhas que fazemos trazem decisões, abrem e fecham portas, e essa é uma delas. Mas a segurança que eu tenho comigo mesma, o conforto e a alegria que eu tenho de ser fiel a mim mesma, aos meus desejos, às coisas que eu acredito, o acolhimento e a alegria que eu encontro pertencendo à comunidade LGBT, tudo isso não tem preço para mim. Isso faz com que a minha pele seja boa, com que eu durma bem a noite, tenha um sorriso genuíno no rosto, tenha prazer em comer e beber e dançar. Isso para mim é a coisa mais preciosa. Esse prazer cotidiano, ele é construído no momento que eu sou fiel a mim mesma.
Outras pessoas abriram caminho para você. Já passou pela experiência de outras mulheres falarem “você me deu coragem para me assumir”?
Isso acontece muito, o tempo todo, não só com pessoas que pertencem à comunidade LGBT, mas com muitos pais e mães, tias que vêm falar comigo e dizem que puderam entender melhor os seus filhos ou pensar melhor sobre a vivência dos seus filhos pela minha vivência, e o que eu compartilho. Sou só uma das agentes desse sistema todo. É uma responsabilidade coletiva, não sou responsável por uma comunidade inteira. Estou vivendo a minha vida com alegria e se isso pode inspirar outras pessoas é muito emocionante. Se eu posso viver mais confortavelmente hoje, é porque muita gente construiu isso antes de mim. Fico com curiosa de saber aí, como é que vai ser daqui 30, 40 anos? Quando eu estiver mais velha, qual vai ser a minha sensação olhando para as pessoas mais jovens? O que que elas vão ter construído? O que a gente vai ter construído?
Nem todo mundo tem uma experiência de acolhimento familiar ao se assumir parte da comunidade LGBT, como você teve. Isso também ajudou a falar sobre o assunto tão abertamente?
Sim, mas meu pai e minha mãe, o apoio que eles me dão é muito para além do acolhimento de ser sapatão. É claro que isso é extremamente importante e me traz uma calma e um aconchego, mas eles sempre acreditaram em mim, nas coisas mais estranhas que eu desejei. Por mais que eles pudessem falar nossa, isso vai ser meio impossível, mas vamos lá minha filha, vamos ver, vamos descobrir juntos. Meus pais sempre acreditaram muito em mim e no meu irmão, e é muito poderosa essa sensação de que alguém acredita em você, porque tem muitos momentos que a gente não acredita na gente mesmo. Alguém te lembrar que você consegue, você já conseguiu... É um acolhimento dos meus pais em acreditar nos filhos deles, mesmo que não soubessem qual era o caminho, que não tivessem certeza que ia dar certo. É uma puta sorte de eu ter nascido com os meus pais.
"Meu pai e minha mãe, o apoio que eles me dão é muito para além do acolhimento de ser sapatão (...) Eles sempre acreditaram em mim, nas coisas mais estranhas que eu desejei"
Como são seus pais?
Meus pais são pessoas simples, do interior, o que também não quer dizer nada. Classe social e território não quer dizer que a pessoa vai conseguir proporcionar esse nível de liberdade e acolhimento. Mas quem não encontra isso em casa, a comunidade LGBT consegue proporcionar.
De que forma?
Fui homenageada no Festival de Cinema de Tiradentes, e foi muito bonito. Várias pessoas foram para lá só para presenciar essa homenagem, meu pai, minha mãe, meus amigos, pessoas que já trabalharam comigo. Em algum momento olhei aquela trupe e pensei isso é a minha família, não só meu pai, minha mãe e meu irmão, que são minha família, mas também todas essas pessoas que eu ligo e durmo no sofá de casa. Isso para mim é família, esse nível de intimidade e aconchego. É algo que eu tenho também com muitas pessoas que não são da minha família sanguínea, e que aprendi com a comunidade LGBT. Muitas pessoas que não encontram esse acolhimento nos pais, encontram essa família fora de casa, e é uma família tão poderosa quanto pai e mãe, às vezes até mais.
Quando você foi homenageada em Tiradentes, sentiu a sensação de ciclo completo?
Eu me senti muito honrada, especialmente por ser em Tiradentes, que é um festival de cinema independente, de um cinema disruptivo, feito por mulheres, por pessoas queer, negras, indígenas. É um festival que acolhe esses filmes e esses realizadores. Penso que o prêmio é um reconhecimento de um trabalho e de escolhas muito arriscadas que eu fiz nos últimos anos de investir em filmes de primeira direção, indies, que não me deram dinheiro, mas que eu pude compensar com trabalhos mais comerciais. Foram apostas que eu fiz e entregas muito grandes para esse cinema autoral independente brasileiro.
O cinema nacional vive um ótimo momento. Como vê esse movimento?
Se eu pensar nos filmes que fiz nos últimos anos foram vários festivais internacionais ganhando prêmios com esses trabalhos e emocionando um público que passou a conhecer nossa cultura pelos nossos filmes. A maneira como a gente conta histórias no Brasil é muito cativante, emociona. É um momento muito bom de relação com o público, sim, e o fato de termos ganhado o nosso primeiro Oscar com Ainda Estou Aqui faz com que as pessoas pensem ok, o que mais que eu vou ver a partir de agora?. Agora, isso é fruto de política pública, né? Com exceção de Ainda Estou Aqui [financiado com recursos próprios] são filmes que foram feitos com dinheiro público. Quando você investe em cultura, o retorno não é imediato, é a longo prazo, é emocional. O orgulho que a gente sentiu com Ainda Estou Aqui não foi construído de um ano para cá. É uma cultura de anos, de a gente se reconhecer na tela, se emocionar, e torcer por nós mesmos. O investimento da cultura não é linear, e é preciso manter esse investimento.
O que o cinema independente proporciona a você?
Tem coisas que só as curtas-metragistas brasileiras estão conseguindo fazer. Se formos falar de narrativas lésbicas ou transmasculinas, por exemplo, não vamos ver isso no streaming, porque não dão essa quantidade de dinheiro para produções desse tipo. Se eu penso em Érica Sarmet, Clari Ribeiro, Mayara Santana, que são três cineastas curta-metragistas com que trabalhei recentemente, o que elas estão fazendo não está acontecendo em nenhum outro lugar. É muito novo, é muito revolucionário. Espero que esses cineastas tenham dinheiro e estrutura para contar as suas histórias em longa-metragem, em série, em novela, em formatos que tenham um alcance maior de público.
Mas já vemos algumas produções no streaming mais diversas, a própria Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente...
Ainda é muito devagar. Temos muito a melhorar. Acho que é inteligente investir nessas narrativas queer, e de outras comunidades, como a perspectiva indígena, negra, e das mulheres, que talvez esteja um pouco mais introduzida já. São histórias que estão aí para ser contadas e que as pessoas se conectam demais com elas, existe uma sede do público. Precisamos manter um lugar de experimentação e de risco, e isso acontece quando a gente tem dinheiro público, que não precisa devolver diretamente em números de dinheiro, em números de espectador, mas em pertencimento e cultura. É muito importante que se continue construindo essas políticas públicas, e no momento o que a gente precisa provar e aprovar bem é a lei do VoD [proejto de lei que busca regulamentar os serviços de streaming e vídeo on demand e que exige que as plataformas paguem tributos e invistam em produções nacionais, entre outros pontos].
Você posta muito sobre seu trabalho nas redes. Como é sua relação com o seu público na internet?
Lá em 2010, quando eu comecei, as redes não tinham o papel que têm hoje. A minha relação com o público era mediada pelos veículos de comunicação; eu dava uma entrevista, a pessoa lia e eu não tinha um retorno, a não ser que encontrasse com ela na rua. Não tinha um contato direto, e essa troca é o mais interessante. Hoje converso com as pessoas na internet, eu converso com as pessoas na rua, muitas vezes o que eu coloco na internet reverbera na rua.
"Gosto muito de rua, festa. Tenho um código, depois de três drinques, não tiro mais foto, e falo isso para a pessoa, digo que posso conversar por 5 minutos"
Como?
Há uma semana eu vestia meu neoprene para nadar no mar às 7 da manhã e uma senhora falou adorei aquele poema que você postou ontem, fui comprar o livro. Conversamos 10 minutos sobre poesia. Meu trabalho é feito para o público, tenho uma relação muito tranquila, muitas vezes eu converso, abraço. Quando é hora de dar limite, eu dou. Gosto muito de rua, festa. Tenho um código, depois de três drinques, não tiro mais foto, e falo isso para a pessoa, digo que posso conversar por 5 minutos. Elas entendem se você contextualiza um pouco.
Vocês já sentiu o ódio e o assédio na internet?
Tem muito ódio na internet, mas isso fala sobre a maneira como essas pessoas estão olhando o mundo e lidando com as coisas. O que em mim incomoda a elas diz mais sobre elas do que sobre mim. A minha sensação, se eu tenho, é mais de preguiça, tipo, ai que pena.
Ser uma pessoa pública, não é fácil. O que te ajudou a lida com essa exposição, com a perda do seu anonimato?
Convivo com isso há muito tempo. Basicamente, a minha vida adulta sempre foi assim, desde os meus 18 anos. Não tenho muito uma outra referência enquanto mulher adulta, às vezes quando não estou no Brasil, eu experimento uma outra [realidade]. Mas as coisas que são realmente íntimas e privadas na minha vida, elas se mantêm íntimas e privadas. Eu não me sinto exposta, nem invadida, porque o que eu resolvo expor na internet ou pelas personagens é de fato uma escolha do que eu quero comunicar. O que é privado e íntimo está resguardado entre os meus, entre os meus amigos, na maneira como eu me relaciono, como eu amo, como eu me divirto.
Terapia ajudou a fazer essa separação entre o público e o privado?
Acho que sim, eu faço psicanálise há muitos anos, mas também há essa fé espiritual, uma proteção espiritual. Sou de uma família muito religiosa, minha bisavó por parte de pai, que nos criou, é a grande benzedeira de Corupá. Ela tem 99 anos, tem fila na porta dela para benzer com arruda, lê mão com a lupa. Quando a gente era criança e tinha um problema de saúde, ia primeiro se benzer, depois ia ao médico. Por parte da minha mãe eram todas benzedeiras, rezadeiras, parteiras. A minha mãe é uma benzedeira. Então, então eu tenho uma religiosidade muito viva na minha vida, que é também um ponto de proteção e de cuidado, e um lugar aonde eu me acolho.
Então é a psicanálise mais a espiritualidade.
A psicanálise, a minha fé, nadar no mar, correr, fazer yoga, muito exercício físico ajuda a organizar as coisas, as vivências. Tem muitas estratégias para seguir a vida com alegria.
"Eu não me sinto exposta, nem invadida, porque o que eu resolvo expor na internet ou pelas personagens é de fato uma escolha do que eu quero comunicar. O que é privado e íntimo está resguardado entre os meus"
Em um podcast, você que contou que teve uma terapeuta lesbofóbica...
Eu levei muitos anos para perceber que isso estava acontecendo. Recebi um acolhimento imenso em casa do meu pai e da minha mãe e fui encontrar esse problema fora de casa, de uma pessoa muito bem recomendada, conhecida, que outros artistas frequentam, que era cara de se pagar e eu gastava um bom dinheiro lá. A vivência LGBT sempre tem um estado de alerta constante, a gente não descansa nunca, é o que que está acontecendo aqui, qual a maneira que essa pessoa está me tratando.
Eu a denunciei no CRP [Conselho Regional de Psicologia], o processo está correndo. Mesmo que não dê em nada, que eu vire um número, em 2018 houve uma denúncia de lesbofobia no CRP do Rio de Janeiro. Para mim foi importante encontrar essa institucionalização do crime que ela cometeu. Mas entendo quem não faz nada, porque é muito traumático tudo. Eu levei alguns anos para conseguir fazer a denúncia, incentivo as pessoas a denunciarem. Às vezes a gente só quer deixar para lá mesmo, porque senão quem tem o trabalho de lidar com isso é quem já está sofrendo.
Muitas mulheres partes da comunidade LGBT se referem a si mesmas como mulheres queer. Você faz sempre questão de falar que é uma "mulher sapatão". Por quê?
É uma escolha consciente, uma certa insubmissão de que não vão conseguir me ofender. Se essa palavra é uma tentativa de ofender, eu recebo ela com carinho e digo mas é bem isso que eu sou, qual o problema, por que é um problema ser sapatão? Você retira o poder da pessoa de te ofender. Eu me identifico muito com a palavra sapatão, gosto dela. Mas tem outras boas também: fancha é uma que é pouco usada; lésbica também; boiola tem gente que usa. Eu gosto de sapatão, sou sapatão, sou lésbica, sou queer. Sou uma pessoa que de algum jeito desviou dessa heterossexualidade compulsória e normativa. Uma mulher desviante.
"Eu me identifico muito com a palavra sapatão, gosto dela. Mas tem outras boas também: fancha é uma que é pouco usada; lésbica também; boiola tem gente que usa. Eu gosto de sapatão, sou sapatão, sou lésbica, sou queer.
Ser uma mulher queer faz com que você seja ainda mais feminista?
Eu acho que ser uma mulher sapatão me faz uma mulher mais alegre e mais feliz.
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