Matheus Nachtergaele: "A bandeira do arco-íris significa as possibilidades infinitas de amar"

08/08/2025 09h01


Fonte Revista Quem

Imagem: Léo Rosario/ GloboMatheus Nachtergaele(Imagem:Léo Rosario/ Globo)Matheus Nachtergaele

Vale Tudo foi a última novela a que Matheus Nachtergaele assistiu antes de entrar definitivamente para o teatro, aos 20 anos. Naquele longínquo 1988, ele e os colegas do Centro de Pesquisa Teatral, em São Paulo, tinham os atores da trama como referência. “Vale Tudo estabeleceu os tipos arquetipais da novela moderna para sempre. São personagens emblemáticos, eternos”, diz ele, que hoje dá vida ao doce Poliana e confessa que, lá atrás, sofreu ao perder capítulos da trama. “Não tinha internet naquela época, eu ficava perguntando para as pessoas: quem matou, quem matou Odete Roitman?”, diverte-se Matheus.

O ator de 57 anos, acredita, que Poliana é um dos personagens mais ternos da dramaturgia brasileiro. Alma sensível, generosa e solitária, ele é gancho para que a novela discuta a assexualidade, forma de sexualidade baseada na falta de atração sexual. “Eu nunca tinha recebido um personagem tão empático e que realmente ouve o outro. Não é fácil interpretar alguém cuja vida pessoal não vem em primeiro lugar para ele mesmo. É bonito, mas não é fácil fazer”, conta Matheus, que fez questão de homenagear Pedro Paulo Rangel, que fez Poliana na primeira versão, por meio da sonoridade de suas frases.

A vida íntima do personagem voltará a ser pauta na novela, com sua aproximação de Marieta (Cacá Ottoni). Matheus, assim como o público, aprende com a jornada de Poliana na comunidade LGBTQUIAPN+, da qual ele mesmo faz parte. “Também é surpreendente para mim. Nem tenho um entendimento tão profundo de todas as as sexualidades, nem acho que elas todas estejam abarcadas na sigla”, diz. “Acho de verdade que com o tempo o H de heterossexual vai ser incorporado e que, daqui um tempo maior ainda, a gente não vai mais precisar dela. Teremos entendido que a bandeira do arco-íris significa as possibilidades infinitas de amar, porque, o afeto, o amor, ele está livre de verdade”, afirma.

“Não só cada pessoa do mundo tem sua própria sexualidade e seu afeto, como também durante uma vida a sexualidade e a maneira de amar muda para cada ser humano. Você pode percorrer algumas várias siglas da nossa bandeira do amor durante a sua vida”, pondera Matheus, que recusa rótulos. “Não quero me colocar em nenhuma gaveta específica, porque o amor é cambiante (...) Eu não quero também prender o meu amor. Já namorei com caras, já namorei com minas, já tive amores platônicos, amores resolvidos. Estou livre e nunca estive em nenhum tipo de armário, nunca”, frisa.

Matheus acredita que a maneira delicada com a qual o tema é abordado na novela é fruto também de uma nova audiência: as crianças. Com personagens tão diversos quanto o Cintura Fina da minissérie Hilda Furacão, que o tornou um ator conhecido, o João Grilo dos filmes O Auto da Compadecida, o Norberto de Renascer, o Pai Helinho de Da Cor do Pecado e o Carreirinha de América, é hoje reconhecido pelos pequenos da nova geração na rua como Poliana.

“A gente tem que realmente encarar os temas que vão sendo propostos, encarar o Brasil, mas lembrar que elas [as crianças] estão ali na sala da família assistindo junto”, aponta. “O mundo mudou, quem quer ver um material mais agressivo ou mais incômodo, procuram fora da TV aberta esse conteúdo. Você vai ter minisséries no streaming mais ousadas, mais contundentes, e a pessoa vai escolher com mais clareza, mais maturidade”, diz.

É justamente no streaming que Matheus voltará com um de seus papéis mais conhecidos, Sandro Cenoura, na segunda temporada de Cidade de Deus, a Luta não Para. No teatro, sua primeira paixão, completa ano que vem uma década encenando Processo de Conscerto do Desejo, em que recita poemas de sua mãe, Maria Cecília, que morreu quando ele tinha três meses. Às vésperas do Setembro Amarelo, Mês de Prevenção ao Suicídio, fala com delicadeza do assunto.

“É um tema penoso, doloroso. Ninguém pode dizer nada de definitivo sobre isso. A gente tem que, por um lado, fornecer o máximo de apoio e de informação para quem está sofrendo e para quem está em volta. Temos que ao mesmo tempo ter a capacidade filosófica mesmo, humana, bonita, de perdoar essas escolhas, e seguimos [em frente]”, ensina.

Durante uma época você falou que não iria mais fazer novelas. Aí veio Renascer, agora Vale Tudo. O que mudou?

Em Renascer a experiência foi deslumbrante, muito artística mesmo. Era era uma novela belíssima, trabalhada quadro a quadro, plano a plano. Foi bom. A gente ficou instigado e movido por um sentimento de fazer televisão com muita arte o tempo inteiro até o final. E olha que era uma novela de 200 capítulos! Um texto magnífico, um grupo de diretores muito inspirados, o elenco estava muito animado artisticamente. Isso me deu coragem para atravessar de novo esse mar que é a novela. porque é uma navegação longa de meses. E foi irrecusável fazer Vale Tudo.

Qual a sua experiência com a versão original de Vale Tudo?

Em 1988 eu tinha 20 anos de idade, e a maior parte da minha formação de dramaturgia vinha da televisão. Eu via as novelas todas, naquela época também havia filmes muito lindos de arte na madrugada, você via Bergman, Orson Welles, Oscarito e Grande Otelo. Era impressionante a televisão aberta naquele tempo. E como o nosso cinema no Brasil era muito pouco feito, uma novela linda, corajosa, uma novela quase que pesada, como Vale Tudo, marcou muito a minha geração. Muito mesmo. E Vale Tudo influenciou muito a gente no CPT [Centro de Pesquisa Teatral, em São Paulo].

De que forma?

O CPT era um berço de atores fabulosos em São Paulo. A gente tinha como referência a construção dos personagens por aqueles atores [de Vale Tudo] naquele momento. Vale Tudo estabeleceu os tipos arquetipais da novela moderna para sempre. Os arquétipos do teatro, a gente conhece há mais tempo, são muito firmes. Mas os do melodrama, do folhetinesco, eles foram fixados aqui no Brasil e estão muito bem desenhados em Vale Tudo: o dramalhão mãe e filha, a trajetória dos heróis e dos vilões modernos... São personagens emblemáticos, eternos. Eu mesmo cansado por causa de Renascer, o Auto da Compadecida, Cine Hollywood, estou feliz por ter aceito, porque recebi esse personagem que é a pura ternura e talvez seja um dos mais ternos da dramaturgia brasileira, o Poliana.

Com é interpretar Poliana?

Eu reassisti a obra toda para fazer a nossa versão. Tudo, tudo, tudo, tudo de novo, Raquel. Eu tenho falado tanto o nome Raquel, que eu falo com você e me sinto meio Poliana dando essa entrevista (risos). O personagem era feito pelo Pedro Paulo Rangel, que é um ator brasileiríssimo, um gênio. Achei a [minha] escolha certeira, eu tenho tipo físico e um tipo de ternura que combina com Poliana. Mas não é fácil de fazer.

Por quê?

Ele é um personagem de apoio, literalmente é o ombro amigo, a pessoa que recebe a Raquel sem nenhum porém. E junto com ela Poliana também cresce; da solidão profunda que sempre viveu, passa a ter uma melhor amiga, uma sócia, sobe na vida. A Manu [Manuela Dias, autora de Vale Tudo] foi muito generosa, deu para ele nessa versão mais texto e deu também a possibilidade da gente investigar mais por que dessa solidão do Poliana. E Manu foi investigar essa característica dos afetos, que é a mais desconhecida da nossa bandeira LGBT, que é o o mundo dos assexuais, aqueles que não têm o romance e sexo como primeira pulsão na vida. São pessoas que podem se entregar a uma amizade sem interesse romântico ou sexual com bastante entusiasmo.

"Eu passei a tentar entender, comecei a admirar muito, e a achar que em alguns aspectos é uma vantagem você não estar movido em primeiro lugar pelo teu objetivo sexual ou romântico"

O que você aprendeu com Poliana sobre o que muitos dizem ser a letra mais "esquecida" da comunidade LGBTQIPAN+?

Quando a questão da assexualidade veio para o Poliana, ele passou a ter seu drama próprio, e é discreto até com isso. Eu passei a tentar entender, comecei a admirar muito, e a achar que em alguns aspectos é uma vantagem você não estar movido em primeiro lugar pelo teu objetivo sexual ou romântico. Não deixa de ter algo de muito individualista você querer concretizar um amor ou querer se saciar sexualmente nos encontros. O Poliana é o personagem que pode esperar um amor verdadeiro para aí, sim, se envolver. É uma aula para mim essa personagem discreta, empática e cujo drama pessoal é essa sensação de solidão por sentir algo que a maioria não sente, ou por sentir o amor de maneira diferente da maioria das pessoas.

Isso gera uma possibilidade de amar o coletivo, de amar o próximo muito grande. Agora que a gente está investigando melhor essa sexualidade ou essa afetividade, mas ela já devia estar ao nosso redor há muito tempo e não notávamos. Provavelmente grandes vocações religiosas, políticas e comunitárias surgiram daí. A assexualidade deve ser característica principal de várias pessoas extremamente generosas, por exemplo, aquela tia que não se casa, mas que cuida de todos, sabe? Eu tenho aprendido bastante, também é surpreendente para mim.

Mesmo sendo parte da comunidade LGBTQIAPN+ você também não tinha, esse entendimento maior do que é a assexualidade?

Não, eu nem tenho um entendimento tão profundo de todas as sexualidades, nem acho que elas todas estejam abarcadas na sigla. Acho de verdade que com o tempo o H de heterossexual vai ser incorporado e que daqui um tempo maior ainda, a gente não vai mais precisar dessa sigla. Teremos entendido que a bandeira do arco-íris significa as possibilidades infinitas de amar, porque, o afeto, o amor na série humana, ele está livre de verdade. É uma caminhada um pouco longa para que a gente entenda e aceite isso. Mas não só cada pessoa do mundo tem sua própria sexualidade e seu afeto, como também durante uma vida a sexualidade e a maneira de amar muda para cada ser humano. Você pode percorrer algumas várias siglas da nossa bandeira do amor durante a sua vida.

Há alguns anos ao dizer que era bissexual, você também afirmou ninguém cabe em uma prateleira apenas.

Não acho que caiba, isso [a sexualidade] é cambiante durante uma vida. A gente já viu isso tanto acontecer, não só ao nosso nosso redor, como também com a gente. Se você dá um nome muito fixo para maneira como você ama, também está se castrando das possibilidades todas de amar que se tem, inclusive a do Poliana. É legal pensar isso. Realmente a gente vive num mundo onde a sexualidade é muito exacerbada, o desejo é muito festejado. Os corpos sexuais são muito celebrados, mostrados. Alguns filósofos modernos dizem que a gente está na época tecnopornográfica farmacológica.

Que seria...

É uma invasão tecnológica, uma invasão de medicação e de pornografia, não só a sexual, mas em muitos aspectos. Me pareceu inclusive, fazendo Poliana, que essa zona do assexual e todas as variações que está se descobrindo disso podem também aos poucos se tornar para muitas pessoas, quando bem compreendidas, um lugar de alívio. É muito legal você poder também tranquilizar algumas pessoas de que elas não estão doentes, mas que talvez simplesmente o sexo não seja a prioridade para a vida delas, e ok.

É uma trajetória bonita, a do Poliana.

Está bonita essa descoberta, estou gostando. Acho que Vale Tudo tem conseguido, apesar dos novos tempos tão conturbados que a gente vive, levantar algumas questões bonitas e interessantes para se pensar sem perder a questão do entretenimento aberto para toda a família. Porque acontece uma coisa que a gente não esperava e explica um pouco para nós o porquê da necessidade da nossa novela não pegar tão pesado, mesmo sendo um horário das 9: as crianças estão assistindo Vale Tudo.

As pessoas têm dito que a questão da assexualidade do Poliana foi abordada e depois abandonada. Não é verdade, a gente está voltando, acho que o público percebeu que ele não quer um namoro que agrida a maneira como sente as coisas. E ele vai conhecer alguém com quem vai talvez conseguir se descobrir: a Marieta, personagem da Cacá Ottoni. Vamos voltar a essa pauta, já estamos gravando. A Cacá me contou que a filha dela de 8 anos diz, mãe, está na hora de ver Vale Tudo.

Você teve algum tipo de receio ao se declarar parte da comunidade LGBTQ+ em um país tão intolerante como o Brasil?

Eu me tornei um ator popular muito cedo, logo nos meus primeiros trabalhos. Foi bem brusca a minha passagem de um ator mais anônimo, mas já de prestígio por causa do teatro e do cinema, meio precocemente para um ator popular mesmo no Brasil. Desde o início, por causa do Cintura Fina de Hilda Furacão, esse assunto foi colocado, e eu respondi com bastante calma sempre e bastante transparência.

Sempre fiz questão também de dizer não quero me colocar em nenhuma gaveta específica, porque o amor é cambiante, o amor, como diz a ópera Carmen de Bizet, o amor é um pássaro rebelde, que ninguém vai poder prender. Eu não quero também prender o meu amor. Já namorei com caras, já namorei com minas, já tive amores platônicos, amores resolvidos. Estou livre e nunca estive em nenhum tipo de armário, nunca. Nem antes, nem depois de dar entrevistas. Até me espanto quando alguém sai do armário tardiamente e isso causa um alvoroço.

"Já namorei com caras, já namorei com minas, já tive amores platônicos, amores resolvidos. Estou livre e nunca estive em nenhum tipo de armário, nunca"

Você nunca se sentiu inseguro?

Não. Eu vou ser muito sincero com você. Eu acho que o Brasil, sim, se mostrou conservador. Nós tomamos um susto [com o conservadorismo], mas isso já estava aí. Do ponto de vista dos afetos e da sexualidade, acho o país mais aberto e arejado do que se supõe. É claro que dentro de algumas famílias e algumas estruturas religiosas a capa conservadora é muito presente e rígida, mas o interior de cada pessoa no Brasil não é. Eu afirmo isso, eu percorro o Brasil por causa do meu ofício, de Norte a Sul, nos lugares mais modernizados e mais arcaicos, e eu nunca sofri uma agressão, nunca vivi um comentário jocoso, nunca estive em nenhum armário e espero também nunca ter agredido ninguém com a minha maneira de ser.

Fiz personagens com todas as orientações afetivas possíveis e continuarei fazendo. Minha orientação é cambiante. Ela é líquida. Ela não é fixada. Eu estou em várias letrinhas lá da nossa bandeira, inclusive nesse H que ainda não está, mas vai entrar. Então eu digo com toda toda calma e clareza: o Brasil é menos careta sexualmente do que possa aparecer. Talvez ele seja mais careta em outros aspectos, e muito na aparência social entre as pessoas. Não acho que elas no íntimo sejam caretas, não. Todo mundo que lerá essa entrevista vai entender do que estou falando. Todo mundo sabe seus desejos e aquilo que foi castrado.

Castrado em que sentido?

Todos nós castramos uma parte dos nossos impulsos. Isso é até importante para que a gente consiga conviver em grupo. Outras castrações são inúteis, o amor é livre. Coisas que a gente não precisa mais segurar. Está todo mundo livre para amar. Só não pode fazer mal ao outro. Não pode assediar um menor de idade, não pode forçar alguém a um sexo que não queira ser feito. De resto, as pessoas estão bem livres para amar.

A verdade é que a gente é uma espécie vencedora. Temos muitos bebês. Do ponto de vista biológico, nós somos a espécie mais vencedora. Nós, as formigas, algumas abelhas, a gente ocupa a terra, mais até do que devia. Então, até nesse aspecto o amor está livre. Não há necessidade da gente formar par com o intuito reprodutivo sempre. Você pode amar livremente. Isso é assustador, porque a liberdade dá medo, dá frio na barriga. Mas é isso. Vamos aos poucos encarando, todos juntos.

E você hoje está amando?

Eu posso falar assim, eu estou solteiro desde a pandemia. Estou como os marinheiros, um amor em cada porto, mesmo.

Não dá muito trabalho?

(risos) Não, é super tranquilo, não são relações fixas. Não é como Seu Quequé [personagem de Ney Latorraca na minissérie Rabo de Saia, em 1984], com uma mulher em cada lugar escondendo uma da outra. Está todo mundo sabendo, e o namoro acontece quando a gente está junto. Amigos com amor. Mas estou com saudade de me apaixonar. Quem sabe quando eu parar de trabalhar tanto eu vá me apaixonar de novo. Mas sabe o que pode estar acontecendo?

O quê?

Pode ser que eu tenha entendido de verdade que o amor é livre e esteja efetivamente satisfeito em ter afetos que também estão misturados com amizades de muitos anos e que não precisam de pactos de casal para seguir adiante. É claro que também não tem as garantias dos pactos, mas tem a liberdade gostosa de transitar. É que eu tenho eu tenho consciência de que, se eu me apaixonar, e é claro que isso pode acontecer a qualquer momento, todas esses amores aí vão ter que ter a gentileza de torcer para que eu esteja contente e abrir mão de uma parte da relação que têm comigo.

Como a perda do anonimato te afeta?

Eu não caminho no Brasil anonimamente, em lugar nenhum. Quem não vê cinema, viu meu trabalho na TV, faço teatro o tempo todo, rodo o Brasil todo... Eu me sinto muito protegido onde quer que esteja. Eu não causo um afeto histérico. As pessoas realmente sorriem porque gostam do trabalho e é óbvio que quando se está numa multidão, dependendo do tipo de pessoas reunidas, você pode ser incomodado. Mas em geral, a aproximação é muito carinhosa em todos os lugares, inclusive festas grandes populares como o Carnaval.

"Gosto de ficar tranquilo entre pessoas tranquilas e simples (...). Eu não sou o cara do camarote. Eu sou o cara da pipoca, é lá que eu sou mais feliz"

Qual a sua relação com o público, os fãs?

O que eu mais senti foi a demora para as pessoas ficarem à vontade comigo. Eu perambulava muito tranquilamente em ambientes muito simples, depois as pessoas passaram a ficar mais alteradas quando eu apareço. Procuro ser o mais discreto possível, mas também não quero dificultar mais ainda meu contato. Não acho que eu vou deixar de ser ator. Talvez seja tarde demais para eu ficar anônimo um dia. Mas eu gosto de ficar tranquilo entre pessoas tranquilas e simples. Não gosto mesmo, de verdade, de ambientes blindados ou caríssimos, ditos, entre aspas, para a gente seleta. Eu não sou o cara do camarote. Eu sou o cara da pipoca, é lá que eu sou mais feliz.

A sua carreira é bem diversa e seus papéis não se repetem. Ao que credita ter conseguido escapar dos rótulos?

Eu escapei disso também dizendo não, mas, principalmente, com muito trabalho e porque sou um ator de verdade. Sou um palhaço de verdade. Eu reúno em mim fisicamente muitas características do bom palhaço. Tenho uma aparência bem comum, normal. Não tenho um tipo de beleza que me enquadre em um tipo de personagem só. Eu tenho uma intuição muito grande do trágico, uma percepção da dor humana e uma vivência de dor e também um senso de humor muito apurado. Tenho uma feição de menino que pode ser muito alegre e terna, e também tenho um demônio, um sátiro em mim, malicioso, maligno. Trabalho muito, trabalhei com grandes diretores, estive no período da minha formação em personagens muito diversos, de grandes dramaturgos. Então o meu diapasão é grande mesmo.

A sua versatilidade foi fundamentel então.

Toda a comédia que eu fiz tem um fundo de tristeza e toda tragédia que eu fiz também tem um senso de humor, até para você não se afundar erradamente no drama e confundir o drama e a tragédia com a tua atuação. Acho que foram percebendo isso. Rapidamente acho que foi demonstrado que eu podia transitar. Eu poderia ser um homem até bonito, suave, eu poderia ser um assassino. Eu sou bom para copiar sotaque. Tenho um corpo físico muito mediano, que abarca os tipos brasileiros muito marginalizados e também tenho aí uma ascendência belga para fazer um endinheirado branquelo. Minha aparência atende a muitos personagens. E já tive heróis românticos, no filme A Serpente faço Paulo, que é o bofe que come as duas irmãs, ambas feitas pela Lucélia Santos, que é a minha atriz preferida. Eu olhei para Jura [Capela, diretor do longa] e falei: Jura, só você para me botar para ser o bofe (risos).

Muitos artistas dizem que a arte foi salvação. Com você também foi assim? Do que a arte te salvou ou libertou?

A arte nos salva a todos, mesmo quem não é artista por puro ofício. Mas eu acho que sim. Eu fiz vestibular para Biologia e não passei. Eu tinha muito talento para desenhar. Eu amava cantar, recitar poemas e desenhava muito bem quando era criança, adolescente, escrevia muito. Mas eu tinha e tenho loucura pela biologia. A biologia, a observação do mundo biológico e natural é onde eu rezo. É a minha igreja, é o mundo: o mundo natural.

Mas foi por outro caminho...

Passei para Belas Artes. Será que eu eu fui salvo? Será que eu fui condenado a ser um ator? Às vezes eu acho que eu fui condenado à arte. Às vezes eu acho que eu fui salvo para poder percorrer a vida de um jeito muito vibrante, conhecer o Brasil por dentro das pessoas. E às vezes eu acho que eu fui condenado, que eu podia ser um superbiólogo e estar salvando alguma espécie em extinção (risos). Estou te respondendo com dúvida (risos). Eu não sei se eu fui salvo ou condenado, mas que é uma aventura bonita é.

"Eu tinha 8 anos, e minha avó materna me levou nos estúdios do Mauricio de Souza para ele me conhecer. Eu desenhei para ele a Mônica e o Cebolinha; Mauricio ficou encantado. Isso sempre teve em mim"

Quando você descobriu que tinha uma veia artística?

Não teve uma hora de descoberta. Desde que eu me lembro de mim, eu sou o cara que declama poesia, que canta as canções de adulto afinadamente, que sobe na mesa e fala Castro Alves, que desenha super bem. Eu tinha 8 anos de idade, e minha avó materna me levou nos estúdios do Mauricio de Souza para ele me conhecer. Eu desenhei para ele a Mônica e o Cebolinha; Mauricio ficou encantado, falou quando você for mais velho, vem aqui fazer parte do meu corpo de desenhistas. Quando eu era menino, fazia história em quadrinhos, desenhava a vida da minha cachorra, caricaturas, escrevia poemas. Isso sempre teve em mim.

Havia algum artista na sua família?

Ninguém na família era profissional, eu não imaginava que isso [ser artista] pudesse existir de verdade, por isso prestei Biologia. Mas também sabia que talvez fosse possível, então, Artes Plásticas, talvez eu seja um pintor, um ilustrador, eu pensei. Meu avô paterno tinha cantado ópera na Bélgica, mas não se profissionalizou, virou artesão no Brasil, fazia tapeçaria, marcenaria, um cara talentoso. Meu pai tocava violão muito bem, foi fundador da Traditional Jazz Band, na faculdade, ele era engenheiro. Foi assim que ele conheceu minha mãe, Maria Cecília, que morreu [quando Matheus tinha três meses]. Eles tocavam violão nos encontros, nas jam sessions. Minha mãe era uma poetisa, mas morreu com 22 anos, então nunca publicou. Mas ela foi publicada e encenada em Processo de Conscerto do Desejo, ano que vem faz uma década que eu faço esse espetáculo.

Você perdeu sua mãe para o suicídio e estamos quase no Setembro Amarelo, Mês da Prevenção ao Suicídio. O que pode falar sobre o assunto? O que acha importante que se fale sobre o tema?

Eu falo bem tranquilamente sobre isso hoje em dia. Eu demorei muito para fazer o espetáculo e desde então falo muito sobre o assunto. O suicídio, para alguns filósofos, é a questão mais importante de todas, é onde você percebe claramente a distinção do homem para os outros animais: os animais não se suicidam. É um tema penoso, árido. O suicídio de alguém causa uma dor terrível no seu entorno. O sofrimento que leva alguém ao suicídio deve ser gigantesco, inimaginável. E eu fico muito triste da minha mãe ter se machucado e não ter podido ser ajudada. Isso me dói muito, muito mesmo.

"O sofrimento que leva alguém ao suicídio deve ser gigantesco, inimaginável. E eu fico muito triste da minha mãe ter se machucado e não ter podido ser ajudada. Isso me dói muito, muito mesmo"

Em sua peça, Processo de Conscerto do Desejo, você lê os poemas de sua mãe. Como o espetáculo ajuda a lidar com essa perda?

Com o espetáculo eu passo essa história limpo, eu faço a minha prece, da maneira que eu sei fazer, na igreja que eu acredito que é o teatro, que é a nossa terreira, onde o sagrado e o profano podem conviver. Todas as noites eu falo os poemas da minha mãe, canto as músicas que ela gostava de tocar e cantar. Eu sei essas músicas, meu pai me ensinou. E ela fica um pouco viva da maneira como é possível - está lá o filho dela, o texto dela, as canções dela. Você não precisa nem ser místico para entender que a Cecília está lá.

É claro que me limpou muito com relação a esse tema. Eu nunca esqueci minha mãe, mesmo nunca tendo conhecido ela. Nunca esqueci da minha mãe nem um dia da minha vida. Desde que eu me lembro de mim, eu sabia que a minha mãe tinha morrido e tinha desejo de ter conhecido minha mãe. Quando eu recebi os poemas, eu fiquei muito feliz. É claro que eu fiquei muito triste também quando eu soube a maneira como ela morreu.

Precisou se preparar de alguma forma para fazer o espetáculo?

Quando eu finalmente decidi fazer o espetáculo, só o fiz quando me sentia com técnica e maduro o suficiente para não transformar a peça em uma peça de terapia egoica diante de um público. Eu estava bem calmo, com muitos anos de análise, quando eu bolei o espetáculo. É isso, é um tema penoso, doloroso. Ninguém pode dizer nada de definitivo sobre isso. A gente tem que, por um lado, fornecer o máximo de apoio e de informação para quem está sofrendo e para quem está em volta. Temos que ao mesmo tempo ter a capacidade filosófica mesmo, humana, bonita, de perdoar essas escolhas, e seguimos [em frente].

Como é o seu trabalho como ator fora das telas ou dos palcos?

O ator é esse artista que não tem nada fora dele para trabalhar. Tudo é nele e da observação que ele tem do mundo, das pessoas, do coletivo, do seu país. A gente fica sempre trabalhando. Mas acho que todo artista é assim. Um pintor deve estar assim sempre quando olho o mundo, a luz que paira sobre uma montanha, no da tarde, o rasgar de uma andorinha no meio do céu, a feiura de um bueiro de esgoto. O cineasta, o tempo inteiro está enquadrando o mundo ao redor sem mesmo perceber.

Eu uso muito a biologia como ator. Apesar de eu ter dito da nossa humanidade e da nossa separação com os bichos, nós somos essencialmente bicho e muitas pulsões animais estão na gente ainda, vivíssimas. Estou o tempo inteiro trabalhando não só quando eu vou ao teatro, vejo filmes, leio. Estou trabalhando, às vezes, sem perceber, observando o mundo e isso acaba desembocando em algum momento, em algum personagens. Às vezes você percebe alguma coisa, procura algum amigo e fala eu notei isso, vamos filmar.

O que mais frustra você na sua profissão?

Acho que cada um sabe a dor é a delícia de ser o que é.

Hoje a presença nas redes tem um peso na escalação de um ator. O que pensa sobre isso?
É cruel e é muito enganador isso tudo. Estamos lidando nesses novos tempos techno pornofarmacológicos. Você ficar saciando as pessoas com as suas intimidades o tempo inteiro, é quase um cacoete, uma doença da nossa época. Isso ser premiado com mais trabalho, parece um círculo vicioso um pouco doentio. Mas obviamente estamos todos no mundo de agora e eu mesmo tenho uma rede social, divulgo os trabalhos através dela e sei que isso existe.

Mas nunca um artista poderia ser julgado pela quantidade de seguidores que tem e, obviamente, a gente vê algumas vezes o resultado catastrófico de se trazer influencers, entre aspas, para um protagonismo na TV ou no cinema. Eu talvez não precise necessariamente disso e meu Instagram eu acho bem discreto, assim, do ponto de vista pessoal. Mas faz parte. E estou falando isso, mas eu também estou meio viciadinho (risos). Como todo mundo, cuido da quantidade de horas que eu fico online.

"A gente vê algumas vezes o resultado catastrófico de se trazer influencers, entre aspas, para um protagonismo na TV ou no cinema"

Você também já se pegou tendo passado uma hora vendo posts no Instagram sem perceber?

Com certeza. E o que é mais louco disso tudo é que a gente mesmo abastece o canal. É quase impossível sair dali, você vai vendo o jornalismo, as notícias, as fofocas, seus amigos, sua família... Isso é muito pornográfico, os temas que você gosta são oferecidos para você pelo algoritmo, tem um certo prazer de saciedade também constante, só dá o que você quer. A gente vai virando meio uns monstros devoradores e não sabe mais levantar a cabeça.

Agora também estou notando o perigo da gente encaminhar os trabalhos pelo gosto dessa sanha pornográfica. Não é que a gente deva ficar só oferecendo o que a internet quer ver, porque as pessoas só querem ter prazer, o confronto desaparece e a boa arte se dá numa certa fricção. Eu acho que todo artista verdadeiro mostra para você alguma coisa que você ainda não tinha visto. E que você reconhece esse algo, às vezes, com alguma resistência. É um trabalho de ampliação. A arte amplia a gente e não só oferece aquilo que a gente já sabia ou já aceitava. Às vezes é bom agradar e às vezes é bom desagradar. É nessa fricção que a gente vive.

"Ninguém mais lê um texto inteiro, um livro inteiro, tudo é muito rápido. Todas as informações resumidas, a orelha de um livro significa o livro. É uma pena"

A escola de teatro, a faculdade, os primeiros passos na profissão, são em geral momentos de descobrimento. O que aprendeu sobre si mesmo ali?

A escola, o encontro com os seus, com os jovens da sua geração, a formatação do artista que você vai ser. Eu acho que esse assunto se conecta bastante com o debate sobre as redes sociais, esse tipo de conhecimento de almanaque com o qual a gente está formando as novas gerações. Ninguém mais lê um texto inteiro, um livro inteiro, tudo é muito rápido. Todas as informações resumidas, a orelha de um livro significa o livro. É uma pena.

O que um ator precisa?

Eu adoro imaginar que nós atores fazemos parte de uma tradição milenar, que nós somos a continuidade da artesania mais interessante do mundo, nascida no ritual religioso, separada dele pela liberdade e cheia de técnicas que nos levam até aqui. Não importa se você faz só TV ou só cinema e nunca vai para o teatro. A verdade é que um bom ator tem que ter passado por personagens diversificados, das estéticas diversas, tem que conhecer os gregos, a pajelança indígena, tem que sacar um pouquinho do candomblé, da umbanda, tem que ter feito aula de dança, balé, judô, capoeira, tem que ter ouvido música clássica.

Um bom ator de verdade leu pelo menos as maiores peças da dramaturgia mundial. A escola é a hora de você fazer Shakespeare, Martins Penas, conhecer Nelson Rodrigues, de você fazer aula de palhaçaria, ter aula de máscara de comédia del”art, enfim, fazer um melodrama bonito, uma comédia brasileira, conhecer as comédias de mulher, experimentar um Hamlet... Formar seu grupo eu acho fundamental e acho lindo. Quando encontro isso é muito raro, um ator que tem consciência de que ele é a continuidade de uma linda tradição.

"Um bom ator de verdade leu pelo menos as maiores peças da dramaturgia mundial"

Que conselho daria para os que estão começando na profissão?

Acho que é bonito a gente valorizar nosso ofício até a última gota. Nós somos descendentes das trupes de circo, dos mambembes maravilhosos, dos palhaços mais geniais e também, claro, a partir de um certo momento, descendentes dos atores de cinema e também dos atores de televisão. Mas se eu pudesse deixar um conselho bonito para rapaziada, eu diria: não deixem de estudar, não. Passem o maior tempo possível na escola de Arte Dramática, e quanto mais vocês souberem coisas, melhor. Ter feito Artes Plásticas, para mim, foi fundamental para o ator que eu sou.

Você está caminhando para os 60. Como é olhar para trás e ver que você conseguiu realizar sua vocação plenamente?

Quando eu olho para a história da minha vida até aqui, eu vejo que muita coisa mesmo aconteceu. São quase 60 filmes, são mais de 30 trabalhos para televisão, muitas peças de teatro. Sou um corpo que passeou pelo Brasil inteiro, conhecendo nossa terra por dentro da sua gente, sendo nossa gente o tempo inteiro. Muitas entidades passaram por esse corpo aqui e ainda passarão. Então é desafiador. É deixar de lado as pulsões mortíferas que a juventude tem e começar a cuidar de mim mesmo para poder ficar mais tempo aqui. É emocionante esse bailado sempre à beira da morte que a vida é.

A idade assusta?

Ah, idade. O senhor que eu já sou finalmente se reconhece. Eu sou capricorniano, então, sempre houve um senhor dentro de mim, desde a minha infância, e ele agora se reconhece um pouco mais. Eu tenho 57 anos e esse meu lado mais contido, introspectivo, encontra conforto nessa dita meia-idade. O moleque que eu sou está estranhando a falta de elasticidade do corpo, o cansaço excessivo em alguns momentos, mas o moleque que eu sou garante a vitalidade do senhor que eu sou e algo em mim não recebe doma. Acho que eu vou ser um velho palhaço. Mas ainda estou naquela hora em que tudo está acontecendo.

"É emocionante esse bailado sempre à beira da morte que a vida é"

Pensa na idade de finitude?

É um aprendizado e também uma certa clareza. Nessa minha idade você ainda tem muito pela frente, mas também já aconteceu muita coisa. Você ainda não é sábio, mas já sabe um pouco mais do que os moleques. Entretanto, o teu corpo já não tem a sabedoria e o esplendor de antes. Sabe que o filósofo que eu sou reflete sobre a finitude nesse momento. O meu corpo percebe as novas dores, as novas limitações, mas o artista que eu sou, por exemplo, percebe o que é mais importante e não precisa tanto mais dos aplausos constantes para se garantir. Está sendo interessante, está sendo bonito. Eu não tenho a sensação da vida ter voado.



Veja mais notícias sobre Celebridades, clique em florianonews.com/celebridades