A avalanche política que abalou o Reino Unido, uma das democracias mais estáveis do mundo

14/12/2019 11h03


Fonte G1

O Reino Unido começou o ano de 2015 com o pé direito.

A economia era "a exceção europeia" e crescia 2,8% por ano, os Conservadores estavam confortavelmente à frente do país, e a recente derrota dos independentistas escoceses em um referendo garantia sua estabilidade.

Brexit: quais são os próximos passos?

Ninguém poderia imaginar que, apenas um ano depois, a quinta economia mundial começaria uma nova etapa de incerteza que revelaria um lado pouco conhecido dos britânicos.

O convervador David Cameron, o primeiro-ministro mais jovem da história do país, cumpriu em 2016 sua promessa eleitoral de organizar um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia.

A votação aconteceu em 23 de junho de 2016. E o resultado foi favorável à saída da União Europeia — decisão que ficou conhecida como "Brexit" e que transformou profundamente a dinâmica da política nacional.

Três anos depois, esse desassossego persiste no que já foi uma das democracias mais estáveis do planeta. Nesta quinta, 12 de dezembro, os eleitores foram às urnas votar em eleições antecipadas, convocadas após meses de impasse no Parlamento em relação ao Brexit.

O resultado foi uma vitória com maioria esmagadora dos conservadores, derrotando o Partido Trabalhista e reconduzindo Boris Johnson ao cargo de primeiro-ministro. A principal bandeira de Johnson era "fazer o Brexit acontecer" e tirar de vez o Reino Unido da União Europeia em janeiro.

O saldo eleitoral indica, portanto, que essa ampla margem obtida pelos conservadores pode fazer com que o Brexit enfim saia do papel.

Embora muitos especialistas culpem o Brexit pelo imbróglio político em que o Reino Unido se encontra, outros opinam que a origem do problema é muito mais complexa.

"O Brexit foi uma consequência, não a causa do problema",
diz Anthony Painter, diretor de pesquisa da Royal Society of Arts, uma organização britânica que busca soluções para desafios sociais.

Para além do Brexit

"No Reino Unido existe uma desigualdade econômica e social profunda"
, afirma Painter. Para ele, essa realidade persiste desde a década de 1980, depois das reformas de Margaret Thatcher, e se intensificou com a crise de 2008.

A crise financeira global impactou toda a Europa, mas o Reino Unido foi um dos países mais afetados: em 2009, seu PIB caiu 4,1%.

De forma semelhante, segundo Painter, o país passa por uma crise de identidade que ele descreve como uma "ansiedade cultural por não saber qual é nosso lugar no mundo, nem nosso lugar na nossa comunidade local, nem o que somos como povo".

E, somado a tudo isso, a questão da permanência da nação na União Europeia dividiu "ainda mais" o povo britânico, explica o especialista, que considera o Brexit como outro movimento populista em meio a muitos que surgiram em todo o mundo.

"Os políticos britânicos foram capazes de aproveitar os temores e ansiedades da população para mobilizá-la com uma agenda política."

Tanto os promotores da campanha a favor de Brexit, como sua organização rival, "Grã Bretanha mais forte na Europa", foram acusados de enganar os eleitores.

"Confusos e cansados"

O Brexit abalou a vida política dos primeiros-ministros David Cameron e sua sucessora, Theresa May.

E, por causa da complexidade e das consequências da saída britânica da União Europeia —tema sobre o qual nenhuma partido conseguiu entrar em acordo— convocou-se três eleições gerais em quatro anos.

Tim Bale, professor da Queen Mary University de Londres e diretor-adjunto do centro de estudos UK in a Changing Europe (Reino Unido em uma Europa em mudança), opina que todas essas eleições organizadas em um curto período não afetam a democracia britânica, mas "deixam as pessoas confusas e cansadas".

O cientista político diz que a forma como conservadores e membros do Partido Trabalhista —encabeçados por Boris Johnson e Jeremy Corbyn, respectivamente— propuseram essas eleições é o que pode ter afetado a democracia.

"Observei muitas eleições ao longo dos anos e não me lembro de nenhuma em que políticos tenham tomado tantas liberdades."

Um drama que surpreende o velho continente

Essa nova dinâmica política no Reino Unido também é vista com curiosidade a partir do outro lado do Canal da Mancha: antes do referendo, o Reino Unido era visto como um exemplo de establidade dentro do continente europeu.

"Na Europa, em países como a França, todo esse drama surpreende porque não é a imagem tradicional que se tem do Reino Unido, onde a política é normalmente levada de forma mais tranquila"
, diz Adrien Rodd, professor titular de Civilizações Britânicas e da Commonwealth da Universidade Sciences Po de Paris.

"Diferente do que acontece nos Estados Unidos, onde as tensões políticas são fortes há décadas, estamos acostumados a ver um sistema parlamentar estável no Reino Unido, baseado em uma longa tradição que perdurou durante séculos e que havia funcionado até agora."

Mas, segundo esse acadêmico francês, essa imagem está mudando. "As pessoas na Europa continental agora se perguntam: "Como é possível que o povo britânico tenha se deixado invadir por essa onda de populismo se as ideologias extremas nunca tiveram espaço nesse país?""

Para Tim Bale, a resposta a essa pergunta também está na palavra que domina a política britânica há três anos: Brexit.

"Esse quebra-cabeça superou as lealdades tradicionais dos partidos e certamente criou um ambiente atípico. É um assunto sobre o qual os políticos têm dificuldade de discutir, e inclusive de manter a calma."

No entanto, esse cientista político destaca que, apesar de a política britânica estar atualmente bastante instável, nenhum país europeu está isento de problemas sociais.

"O presidente Macron está sob pressão por causa de protestos na França; na Espanha ficou difícil formar um governo e por isso várias eleições foram convocadas; e algo similar aconteceu na Itália... Talvez o Reino Unido tenha se tornado mais europeu."

Como sair desse impasse?

Até agora, ninguém elaborou uma proposta que tenha satisfeito a maioria.

A decisão deste 12 de dezembro, descrita por alguns especialistas como uma das mais cruciais da história da nação europeia desde a Segunda Guerra Mundial, pode mudar isso.

Como ganhador das eleições, o Partido Conservador, com sua maioria parlamentar, pode finalmente levar a cabo seu plano de fazer o Reino Unido abandonar a União Europeia no dia 31 de janeiro, como Boris Johnson prometeu.

Segundo os últimos dados da organização Ipsos Mori publicados em novembro, 56% dos eleitores consideram o Brexit prioridade número dois, depois do NHS (o sistema de sáude pública britânico), que 60% dos eleitores nomearam como preocupação número um.

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