Livro revê 200 anos de percalços da educação brasileira: "Incompreensão do passado dificulta diagnós

30/07/2022 09h44


Fonte G1

Imagem: Arquivo Biblioteca NacionalClique para ampliarEscola de Blumenau, de 1880(Imagem:Arquivo Biblioteca Nacional)Escola de Blumenau, de 1880

Na década de 1930, a ditadura do Estado Novo oficializou, num decreto, que o país deveria ter um tipo de escola para a elite chegar ao ensino superior e outra, focada no ensino profissionalizante, para a massa. Antes disso, ainda no século XIX, “os escravos e os pretos africanos, libertos ou livres” não poderiam nem frequentar as salas de aula. Esses são apenas dois exemplos de 200 anos de exclusões na educação brasileira. Elas construíram uma forte cultura de desigualdades, reproduzidas até hoje, analisa Antônio Gois, jornalista especializado em educação que lançou nesta semana “O ponto a que chegamos”. No livro, o colunista do GLOBO interpreta atrasos e avanços nas salas de aula do país desde a Independência.

— Várias ideias sobre o passado da educação no Brasil que estão no senso comum são equivocadas. E elas seguem influenciando políticas públicas do presente. A incompreensão do passado dificulta o diagnóstico da educação no país de agora— afirma Gois.

O principal deles é o mito da escola de qualidade no passado. O ensino público de outrora, mostra Gois, era uma máquina de exclusão. Dados das décadas de 1940 a 1960, por exemplo, revelam que, de cada mil estudantes matriculados no primeiro ano do ensino fundamental, menos da metade seguia para o segundo.

— O período em que mais avançamos foi o da redemocratização, após a ditadura militar. Apesar de todos os problemas, melhoramos significativamente o financiamento, o acesso e a qualidade da educação no Brasil. Em 1985, 14% dos jovens estavam no ensino médio. Em 2020, chegamos a 75% — diz Gois, lembrando que o aprendizado também cresceu — Detectamos neste período ganhos de qualidade, mas insuficientes e só nos anos iniciais. Ao se comparar o Brasil com outros países, estamos atrasados.

O Brasil chega ao Bicentenário gastando uma proporção do PIB (4,3%) com educação similar ao investimento de países desenvolvidos. Mas o PIB per capita ainda é muito abaixo (37%) da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Universalização


O país conseguiu universalizar o ensino fundamental. Mas ainda precisa atrair os jovens para o ensino médio e aumentar taxas de matrícula em creches e na pré-escola. A aprendizagem cresceu no começo da década passada, oscilou em avaliações recentes e foi duramente abalada após a pandemia (confira os desafios abaixo).

— Algumas redes conseguiram se recuperar em determinados indicadores, como as de Pernambuco, Ceará e a de Teresina. A boa notícia é que somos capazes de romper com o atraso do passado. O ruim é olhar para estados como o Rio e o Rio Grande do Sul, superados pela falta de política pública constante — diz o colunista.

Os próximos anos chegarão com desafios enormes. Além da crise a ser desatada, causada especialmente pela pandemia e agravada pela falta de coordenação central à interrupção das aulas, projeta-se um 2023 apertado financeiramente.

— Esperamos que o próximo governo recupere pelo menos o investimento federal que, além de parar de crescer, regrediu, em alguns casos. E de um MEC disposto a dialogar com estados e municípios na construção conjunta de políticas — afirma.

Herança maldita

As dificuldades vêm de longe. A Coroa portuguesa só regulamentou a instrução primária no reino e nas colônias em 1772. Na Prússia (motor da unificação alemã), por exemplo, já em 1612, toda criança de 6 a 12 anos tinha de ser matriculada em escolas.

O avanço a passos de tartaruga no Brasil Colônia e Império afetou a democratização do ensino no país. Em 1900, o Brasil tinha apenas 10% de crianças de 5 a 14 anos na escola. Os portugueses, 19%. Os EUA já tinham 94% e muitos latino-americanos estavam à frente de brasileiros e portugueses.

A primeira Constituição republicana, em 1891, foi omissa em relação ao papel do governo central, atribuindo aos estados a formulação de políticas públicas para o setor. E duas ditaduras foram os períodos, demonstra Antonio Gois, de maiores retrocessos:

— No Estado Novo, o ensino secundário era exclusivamente para as elites e o profissionalizante para a massa. Na ditadura militar, priorizou-se o superior, com o ensino básico avançando muito menos do que deveria.

Financiamento e qualidade

Com baixos resultados no Pisa e gasto do PIB similar a países mais ricos, o Brasil tem sofrido com o diagnóstico de que gasta o suficiente, mas de forma ineficiente, o que não é necessariamente verdade. “É possível identificar programas nitidamente ineficientes e outros bastante eficazes”, escreve Gois no livro. Já Catarina Santos, especialista em educação da Universidade de Brasília, defende que o Brasil ainda gasta pouco por aluno e as demandas são altas: “Muitos estudantes dependem do que a escola tem para desenvolvimento, alimentação e proteção, tudo isso”.

Analfabetismo

Momento que define toda a trajetória escolar dos estudantes, a alfabetização vive uma enorme crise por ser a etapa escolar com os maiores prejuízos durante o ensino remoto. Para isso, diz o especialista em educação Gregório Grisa, é fundamental reformular as formações continuadas “com foco em metodologias chanceladas por boas práticas”. Além disso, ele avalia que é o Brasil precisa remodelar os processos pedagógicos vividos já na pré-escola (de 4 a 5 anos), que é um momento de pré-alfabetização, “introduzindo um conjunto de atividades lúdicas que garantam conhecimento prévio para que elas possam se alfabetizar”, explica o especialista.

Professores

Duas das três variáveis mais importantes para explicar o sucesso de alguns países no Pisa são a atratividade da carreira docente e uma formação de qualidade dos professores, aponta a consultoria internacional McKinsey. “Precisamos investir em mais e melhor formação de professores. Não para implementar teorias específicas, mas para que os professores ajudem na construção de novas políticas públicas”, aponta Catarina Santos. “Também é fundamental melhorar a remuneração e as condições para que eles se dediquem exclusivamente a uma escola”.

Desigualdades

Legado de décadas de exclusões, as desigualdades na educação são até hoje reproduzidas no país. E até despercebidamente, avalia Gois. Segundo o especialista, uma prática comum nas redes públicas é a de o professor mais experiente ter o privilégio de escolher onde vai dar aula. “Pensando na equidade, o sistema deveria alocar esse profissionais nas escolas que mais precisam. Para que, assim, os alunos com mais dificuldades tenham o melhor professor daquela rede”, analisa o autor. 

Tópicos: brasil, ensino, educa??o