Musical sobre Alcione se engrandece no primeiro ato e perde linha evolutiva da dramaturgia no segund

03/12/2022 10h05


Fonte G1

Imagem: DivulgaçãoCena marcante do segundo ato do espetáculo Cena marcante do segundo ato do espetáculo "Marrom ? O musical"

Surgido de cruzamento entre as matrizes do samba e do jazz, gêneros primos, como sentenciou já no título o samba de Magnu Sousá e Nei Lopes lançado por Alcione em 2004, o canto da intérprete maranhense é tão singular quanto multifacetado.

No espetáculo teatral Marrom – O musical, escrito e dirigido por Miguel Falabella, tal diversidade é enfatizada em cena quando várias atrizes se revezam na pele da cantora no segundo ato, dando vozes à longa sequência de sucessos românticos em número musical costurado com baladas como Qualquer dia desses (Reginaldo Bessa, 1983), Meu vício é você (Chico Roque e Carlos Colla, 1987), Estranha loucura (Michael Sullivan e Paulo Massadas, 1987) e Nem morta (Michael Sullivan e Paulo Massadas, 1985), entre outras canções populares propagadas pela voz grave da intérprete.

Valorizada pelo vestido amarelo, de molde recorrente nos figurinos de cores vivas com que Alcione normalmente se apresenta em cena, essa imagem do segundo ato fica impressa na mente do espectador de Marrom – O musical pela beleza plástica.

Só que, nesse segundo ato, a original dramaturgia do primeiro ato resulta diluída justamente por priorizar a exposição de quadros soltos e de números musicais, como a sequência dos sucessos românticos da cantora, sendo a opção pelo romantismo retratada no texto como ato de resistência da mulher negra.

Terceiro título da trilogia idealizada por Jô Santana com musicais em tributo a vozes do samba, Marrom – O musical sucede os espetáculos sobre Cartola (1908 – 1980) e Dona Ivone Lara (1922 – 2008) nessa nobre linhagem e celebra os 50 anos de carreira da cantora.

Após estrear em agosto em São Paulo (SP), o musical sobre Alcione aportou em 25 de novembro – quatro dias após o 75º aniversário de Alcione – no Rio de Janeiro (RJ), onde fica em até 5 de fevereiro, de sexta-feira a domingo, na Grande Sala da Cidade das Artes.

Sem seguir à risca a receita dos musicais biográficos do teatro brasileiro, o autor e diretor Miguel Falabella optou por entrelaçar a história de Alcione com a saga de casal de escravizados, Pai Francisco e Mãe Catirina, contada com a linguagem e a exuberância visual do bumba-meu-boi, manifestação musical e folclórica do Maranhão, estado natal de Alcione, terra também do tambor de crioula.

Com vivacidade, o personagem Cazumbá costura em cena as duas tramas, atuando como (excelente) mestre-de-cerimônias nesse espetáculo cuja dramaturgia faz sentido para quem tem ciência de que como a rica cultura maranhense está impregnada na alma dessa grande cantora nascida em São Luís (MA) em 21 de novembro de 1947 e também associada ao Rio de Janeiro (RJ), cidade para onde a Marrom migrou em 1968.

O primeiro ato de Marrom – O musical é dedicado a repisar os caminhos trilhados por Alcione na infância e adolescência, quando a futura cantora aprendeu a tocar trompete com o pai, João Carlos Dias Nazareth, professor de música e mestre da banda da Polícia Militar de São Luís do Maranhão.

Autor de Cajueiro velho (1976), composição apresentada na parte inicial do roteiro musical, João Carlos Dias Nazareth era também mulherengo. O que fez com que Falabella tivesse a boa ideia de inserir a canção A loba (Paulinho Resende e Juninho Penalva, 2001) na voz da mãe de Alcione, Dona Felipa, interpretada por Lilian Valeska, atriz e cantora de voz potente que sobressai no expressivo elenco negro quando, já no segundo ato, também assume o papel de Alcione (outras atrizes de notória artilharia vocal, como Karin Hils e Letícia Soares, também integram o talentoso elenco do musical).

Nesse primeiro ato, concluído quando Alcione consegue enfim a chance de gravar um álbum e é transformada nA voz do samba, após ter cantado vários gêneros musicais na noite carioca, a música Rio antigo (Nonato Buzar e Chico Anysio, 1979) ganha interpretação cheia de ginga que mostra como samba e jazz podem se amalgamar na voz de Alcione, cujo registro volumoso tem a tessitura dos contraltos.

No segundo ato, a história de Alcione perde a linha evolutiva do primeiro ato. Há, sim, quadros soltos que expõem o casamento de Alcione com marido italiano, a amizade da Marrom com Emilio Santiago (1946 – 2013), a cumplicidade com Martinho da Villa – retratado de forma caricata – e a paixão pela escola de samba Mangueira.

Ainda que o primeiro ato tenha resultado (muito) superior ao segundo em termos dramatúrgicos, Marrom – O musical honra a trajetória de Alcione Dias Nazareth, cantora que já transcende rótulos e o próprio tempo.

Tópicos: musical, alcione, marrom