Como o horror se camufla em filmes, séries, livros e obras de arte

21/01/2020 11h21


Fonte Revista Galileu

Certa vez, os cineastas brasileiros Rogério Sganzerla e Júlio Bressane conversavam sobre filmes de gênero e cinema no geral. Ambos foram representantes do chamado “udigrúdi” (corruptela de undergound), movimento cinematográfico de natureza paradoxal, que propunha tanto diálogos quanto rupturas com o Cinema Novo. Em um dado momento, Sganzerla indaga: “Júlio, o que seria o horror?”, e a resposta do realizador carioca foi direta: “Eu sei que o horror… não está no horror.”

O diálogo está no documentário Horror Palace Hotel; ou O gênio Total, que foi realizado em 1978 pelo cineasta paulistano Jairo Ferreira e pelo próprio Sganzerla. De acordo com o crítico Carlos Primati, o filme marcou época porque propôs a primeira discussão relevante sobre o caráter do horror no cinema brasileiro. Em um texto publicado na revista Acrobata, Primati desenvolve este ponto de vista e ainda apresenta um detalhado panorama da nossa produção nacional do gênero.

Dentro e fora do fantástico

Quarenta e um anos depois, a afirmação de Bressane parece mais atual do que nunca. Ainda que ele se referisse aos filmes “horrorosos” que o cinema brasileiro oficial vinha oferecendo no final dos anos 1970, a frase é certeira ao delinear o horror como uma vertente flexível, fluída, capaz de se misturar facilmente às outras possibilidades das narrativas fantásticas, e mesmo sobreviver fora desse contexto — no cinema, na literatura ou em qualquer outra linguagem.

Olhando em retrospecto, encontramos muitos exemplos disso, como um dos clássicos modernos da ficção científica: Alien, o oitavo passageiro, dirigido por Ridley Scott. Nele, a presença do horror é tão forte – e perturbadora – que muitas vezes esquecemos que se trata de um filme também de ficção científica. Lançado em 1979, não há dúvidas de que o horror foi o caminho escolhido pelo diretor para diferenciar a sua obra de outro filme que tinha estreado dois anos antes: Star Wars.

Ufologia e dragões

Na década de 90, um dos seriados mais bem-sucedidos foi Arquivo X. As aventuras de Dana Scully e Fox Mulder, agentes do FBI responsáveis por investigar casos sobrenaturais, são muitas vezes associadas apenas à ficção científica por tratar de temáticas como ufologia, mutações, ou doenças epidêmicas. No entanto, tudo isso era filmado com frequência a partir de uma estética sombria, violenta e bastante assustadora.

Mais perto de nós, temos o exemplo de um tremendo sucesso da TV, Game of Thrones. A série apresenta uma narrativa épica de Fantasia permeada por um roteiro e uma produção (ao menos nas primeiras cinco temporadas) bastante sofisticados, e sem medo de tratar de temáticas adultas.

No entanto, chama a atenção a marca do horror ao longo de toda a série – em especial nos momentos em que os elementos mais fantásticos surgem. A grande ameaça sobrenatural, os White Walkers, nada mais é do que uma releitura de um dos mais famosos monstros do horror, o zumbi.

Horror contrabandeado

O mais surpreendente, no entanto, é encontrarmos ecos do horror onde menos esperávamos. Ou seja, em narrativas que sequer são marcadas pela presença do fantástico, do confronto entre realidade e sobrenaturalidade. É quase como um contrabando do horror para dentro de obras criadas com outros propósitos.

É o caso da série Chernobyl, da HBO. Embora seja uma obra de ficção, a narrativa tenta manter a fidelidade aos fatos históricos que levaram a um dos piores desastres nucleares da história. No fim das contas, o que é Chernobyl? Uma série sobre um Mal invisível e insensível à humanidade. É um Mal de poder incomensurável, diante do qual nós nos revelamos frágeis e impotentes.

Das cores usadas na fotografia, passando pelas atuações sombrias e pela trilha sonora, as impressões digitais do horror (e da ficção científica distópica) são visíveis por todos os lugares. E há, além do mais, cenas específicas que poderiam ter saído de um Alien, de um episódio de Arquivo X, ou de um conto de Stephen King.

Fascínio e aversão

Uma das mais importantes marcas do horror é a degradação do corpo humano diante de forças, visíveis ou invisíveis, que lhe são hostis. Algumas cenas de Chernobyl são dignas desse horror corporal, em especial o drama do bombeiro Vasily Ignatenko, cuja exposição a doses letais de radiação faz com que seu corpo literalmente se despedace. Quem não se lembra de filmes como A mosca, de David Cronenberg, ao perceber, entre o fascínio e a aversão, o que acontece com o corpo de muitos dos personagens de Chernobyl?

Ainda falando da série, também é memorável a sequência em que três trabalhadores precisam entrar em um subterrâneo alagado da usina, a fim de abrir uma válvula e evitar uma nova explosão abaixo do reator nuclear. Toda a passagem, da entrada dos homens na escuridão alagada até o momento culminante, segue a cartilha narrativa de décadas de filmes de horror.

O lado escuro das artes visuais

Fantasmagorias, demonologia, ansiedades, luzes e sombras: antes mesmo que o horror se desenvolvesse como o conhecemos hoje, as artes visuais anteciparam os pesadelos que amamos viver. São incontáveis os pintores, escultores, ilustradores, gravuristas e artistas em geral que exploraram esses meandros. Hieronymus Bosch (1450-1516) e Francisco de Goya (1746-1828) talvez sejam os nomes de maior destaque entre aqueles que criaram uma autêntica gramática do horror.

O movimento perdura nas artes visuais modernas e contemporâneas. Inúmeros artistas de tempos recentes receberam e recebem as influências gênero. Um dos mais reconhecidos é o irlandês Francis Bacon (1909-1992), cujas pinturas perturbam colecionadores e críticos de arte há décadas.

No Brasil, um importante artista contemporâneo é o amazonense Rodrigo Braga. Em sua poética, composta por fotografias, performances e vídeos, entre outros suportes, Braga com frequência problematiza as fronteiras entre o humano, o animal e a natureza, produzindo, como resultado, imagens permeadas de seres híbridos e monstruosos, ao redor dos quais há um halo de morte e transcendência.

Outro exemplo é a japonesa Chiharu Shiota, que está com duas exposições em São Paulo (na Japan House e no CCBB). Entre seus temas, podemos destacar as reflexões sobre o corpo feminino e sobre a memória. A artista é conhecida por instalações nas quais objetos como cadeados, barcos ou vestidos são envolvidos em uma espessa trama de fios.

Em algumas dessas obras, sentimos a construção de uma insólita e delicada sensação fantasmagórica. Em outras, a cor vermelha é usada para a criação de um efeito estético que nos remete ao gore e à agonia corporal como metáfora de crises existenciais.

Para não dizer que não falamos dos livros

Por fim, na literatura não seria diferente. É muito interessante constatar o quanto ecos da estética do horror são ouvidos com força na autoria feminina contemporânea, em romances, novelas e contos que, embora não possam ser chamados de literatura de horror, se deixam influenciar pelo horror mesmo assim. A obra da argentina Samanta Schweblin, por exemplo, destaca-se por inserir elementos do horror em contos que, à primeira vista, não são reconhecidos de imediato no gênero.

O mesmo pode ser dito de algumas narrativas da canadense Margaret Atwood, ou da americana Lucia Berlin, cujos geniais contos do livro Manual da faxineira, em alguns momentos, também se alinham a essa tendência (você nunca verá da mesma maneira uma cadeira de dentista após ler esse livro).

Na literatura brasileira, a escritora Ana Paula Maia vem construindo uma premiada carreira – seus dois últimos romances venceram o importante Prêmio São Paulo de Literatura – abordando a vida bruta de personagens masculinos envolvidos em crimes e trabalhos desumanizantes. Volta e meia, não só o leitor se deparará com cenários sombrios e marcados por um gótico contemporâneo, como é a penitenciária do seu romance Assim na terra como embaixo da terra, mas igualmente com cenas de horror corporal e violência bastante explícitas.

O horror, portanto, torna-se um recurso que pode acrescentar um sabor peculiar às narrativas e obras artísticas contemporâneas, mesmo que seus criadores não estejam compromissados com o gênero.

A partir dos exemplos mencionados – e lembrando que muitos outros poderiam ser apontados –, percebemos o quanto crítica social, questionamento do patriarcado, recusa da normatização do corpo e do desejo, denúncia dos preconceitos de gênero, raça e sexualidade, ansiedades existenciais e políticas, entre outros temas caros à produção artística atual, podem ser desdobrados em uma chave mais obscura e tenebrosa, que transcende o conhecido vocabulário do gênero. Afinal, basta passarmos os olhos em qualquer noticiário para percebermos que o horror, de fato, não está no horror.

*Oscar Nestarez é autor e pesquisador da literatura de horror. Publicou "Poe e Lovecraft: Um Ensaio Sobre o Medo na Literatura" (Livrus), a coletânea de contos "Horror adentro" (Kazuá) e o romance "Bile negra" (Pyro), que recebeu o prêmio de melhor narrativa longa de horror da Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST).

Colaboração especial: Cristhiano Aguiar é escritor e professor do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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