A potência da periferia

27/12/2019 11h06


Fonte Marie Claire

Imagem: Marco SobralClique para ampliar"O negro começa a empreender por necessidade e descobre que faz isso desde sempre, quando teve que pagar pela sua própria alforria", diz Ludmyla Oliveira
"Aprendi a bordar com a minha avó, ainda criancinha, aos 10 anos. A vida lá em casa nunca foi fácil, mas fomos incentivadas a aprender uma arte que desperta a criatividade desde a infância. Moradora da comunidade Santa Margarida, na zona oeste do Rio, os estudos sempre foram o pilar da criação familiar – meu e das minhas duas irmãs, bolsistas da Escola Santa Mônica. Com o falecimento do meu pai, quando tinha 14 anos, o que era para ser um hobby se tornou um meio de ajudar dentro de casa e pagar o transporte até o colégio. A moda entrou na minha vida assim: metade encanto, metade necessidade. Na adolescência, bordava roupas para grandes marcas do Rio, junto com muitas mulheres do bairro.

Concluir o ensino médio não foi fácil, mas o incentivo de minha mãe sempre foi primordial. Àquela altura não imaginava que hoje, aos 30, seria dona da minha própria marca de bolsas e acessórios. Ser mulher, negra e periférica me dificultou o acesso aos estudos: quando realizei o sonho de entrar para a faculdade de Moda, dois anos depois, não pude continuar, pois o que eu juntava trabalhando não dava para bancar os custos do curso.

Mas fui criada para enfrentar o preconceito e me superar. Nunca me deixei abater. Resolvi tentar de novo e, aos 21, passei em sexto lugar no curso de Indumentária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Infelizmente, naquele ano, só abriram cinco vagas. Pensa que desisti? Não. Com a boa nota no Enem, consegui uma bolsa para faculdade particular, mas eu já não enxergava mais a moda como um caminho viável. Então, escolhi Administração de Empresas, e foi a melhor decisão porque, hoje, com meus conhecimentos de gestão, ajudo outras empreendedoras periféricas.

A moda voltou à minha vida às vésperas de me formar, quando fui convidada para ser madrinha de casamento e não encontrava a clutch ideal. Estava acima do peso e não queria nada que chamasse a atenção. Decidi costurar minha própria bolsa. E nunca mais parei. Montei um ateliê em casa com a minha mãe e criamos, em 2015, a Crioula Criativa, marca de bolsas e acessórios com epicentro na cultura afrobrasileira. Inspiradas em nossa ancestralidade, espalhamos as cores e a valorização feminina, usando resíduos têxteis para produção de nossos acessórios. Junto, veio uma nova forma de me enxergar e transformar dúvidas em consciência étnico-racial. Além disso, passamos a abrir o ateliê uma vez por semana para dar aulas de corte e costura às mulheres da comunidade, para incentivá-las a reencontrar a conexão com a criatividade. Isso é primordial para mim, porque sei que a moda transforma vidas, e eu sou um grande exemplo disso.

Passava os dias em um escritório, como administradora, e as noites no ateliê. Em 2016 comecei a realizar capacitações e conhecer outras empreendedoras. Até que, em 2018, fui selecionada para participar do AfroLab, realizado pela Adriana Barbosa, da Feira Preta, a maior feira de mercado negro da América Latina, e a participar do laboratório de capacitação técnica e criativa. O projeto me deu força para chutar o emprego e encarar o empreendedorismo. Não só na Crioula, mas como consultora financeira de outras mulheres como eu. No AfroLab, vi que muitos empreendedores têm dificuldade de gerenciar seus negócios. E recebi o convite para integrar a equipe "facilitadora" do projeto, do qual sou representante no Rio.

Nós, negros e periféricos, começamos a empreender por necessidade e descobrimos que fazemos isso desde sempre. Está no nosso DNA. O Brasil é a maior diáspora de África, e hoje mais da metade dos empreendedores do País é de negros. Toda criança pobre viu sua avó ou mãe fazendo sanduíche para vender, porque precisava para ajudar mais em casa. Somos obrigados a nos reinventar o tempo inteiro. Em janeiro deste ano, junto com duas amigas empreendedoras – Geisa Nascimento e Manoela Costa –, formamos o coletivo Cê Vira nos Negócios, que oferece capacitações e consultoria nas áreas de gestão financeira, tecnologias acessíveis e produção de moda para desenvolvimento de empreendedores. Mergulhei na moda depois que entendi que posso transformar vidas com ela. Acredito na potência da periferia e na importância do trabalho e do crescimento em rede."

Confira as últimas notícias sobre Cultura: florianonews.com/cultura
Siga @florianonews e curta o FlorianoNews

Tópicos: mulheres, moda, negros