Psicóloga revela "terror noturno" em sobreviventes do Flamengo, mas vê superação com acompanhamento

06/02/2020 09h12


Fonte Globoesporte.com

Imagem: InfoesporteOs dez atletas mortos do Flamengo no incêndio no Ninho do Urubu(Imagem:Infoesporte)Os dez atletas mortos do Flamengo no incêndio no Ninho do Urubu

O fogo que destruiu um alojamento do Ninho do Urubu, dia 8 de fevereiro de 2019, e fez dez vítimas de 14 a 16 anos, deixou marcas profundas no Flamengo. Em especial nos atletas, familiares e funcionários da base do clube. Apesar do luto, era preciso seguir em frente, fazer girar a máquina de sonhos do Ninho e vencer pelos que se foram e pelos que ficaram. "Do luto à luta" virou o lema.

Imagem: Reprodução/InstagramJhonata Ventura, um dos sobreviventes do incêndio no Ninho(Imagem:Reprodução/Instagram)Jhonata Ventura, um dos sobreviventes do incêndio no Ninho

Para lidar com o sentimento de perda, medos e possíveis traumas, foi necessário ter um cuidado especial com os meninos da base. O trabalho de psicologia, que já era feito no clube, precisou ser adaptado. Além de dar conforto e amparo, era necessário dar novo sentido para dor e transformá-la em alavanca para a retomada.

Michelle Rizkalla, psicóloga do Flamengo, esteve perto dos meninos que estavam no Ninho no dia do incêndio e também dos que não estavam. Alguns atletas tiveram problemas, por exemplo, como o "terror noturno", já que a tragédia aconteceu durante a madrugada, depois que um aparelho de ar-condicionado pegou fogo.

- Após um acontecimento dessa gravidade, ficam muito aparentes as alterações no sono, alimentação, humor, isolamento e agressividade. Nos atletas que estavam alojados, queda de rendimento, por uma queda de concentração e pensamentos fixados na cena. Os que tinham maior proximidade com os meninos que estavam envolvidos também desenvolveram algumas reações e receberam assistência. Problemas com o sono, de pensamentos disfuncionais, alteração no apetite, medos... Alguns tiveram o "terror noturno", por conta da situação específica ter sido à noite. E os outros que não eram tão próximos, tiveram a função de estimular - contou Michelle Rizkalla.

De acordo com a psicóloga, os sintomas foram desaparecendo com o tempo após a realização de tratamento.

Imagem: Arquivo pessoalMichelle Rizkalla, psicóloga do Flamnego (Imagem:Arquivo pessoal)Michelle Rizkalla, psicóloga do Flamnego 

Cauan e Francisco Dyogo, dois dos três atletas que ficaram feridos no incêndio, conseguiram rapidamente retomar as atividades no campo, o que facilitou também a recuperação psicológica. Apenas Jhonata Ventura, que teve parte do corpo queimado, ainda não voltou a jogar.

- O Jonathan, que foi o mais grave, tinha alguma restrição de visitação (por causa do tratamento para queimaduras). Não foram tão frequentes. Mas sempre que o médico achava importante, tinha uma presença física (da psicóloga Duda). Os outros dois tiveram uma alta mais rápida. O retorno já foi um remédio, um reencontro com a vida. Os três reagiram de formas diferentes - disse Michele Rizkalla.

Durante este um ano após o incêndio, as mortes no Ninho viraram motivo para alguns torcedores rivais, por exemplo, gritarem "Time de assassinos" nas arquibancadas. Na base também aconteceu um caso marcante. O goleiro Cadu, do Vasco, foi acusado de citar a tragédia para provocar. Os jogadores do Flamengo reagiram e houve confusão. O atleta vascaíno, que era amigo de Christian, uma das vítimas, pediu desculpas e disse que apenas cobrou amparo aos familiares.

- Houve uma grande confusão em campo. O próprio clube adversário se retratou na internet. O Flamengo não puniu nosso jogador por ter reagido verbalmente. Essa foi a única reação que a gente sabe que eles tiveram esse comportamento mais explosivo após uma ofensa - disse Michelle.

Imagem: DivulgaçãoCauan voltou a jogar pelo Flamengo (Imagem:Divulgação)Cauan voltou a jogar pelo Flamengo 

Psicólogos mantêm contato com alguns familiares

Nos primeiros dias após o incêndio, os psicólogos do Flamengo fizeram o trabalho de tentar dar suporte aos familiares, que foram levados ao Rio de Janeiro e ficaram hospedados em um hotel. Com o passar do tempo, a ideia foi seguir o acompanhamento destes parentes.

Alguns recusaram o contato com os psicólogos, mas outros, uma minoria, até hoje mantêm contato com as profissionais do Flamengo. Como muitas famílias são de outras cidades, psicólogos locais foram contratados para fazerem o tratamento.

- Inicialmente foi só escutar, dar suporte. Mantivemos durante um tempo, nos seis primeiros meses, um contato semanal com as famílias. Claro que não era para fazer um acompanhamento psicológico, mas para dar suporte. Muito mais para dizer assim "não é porque passou que a gente te esqueceu. Você continua sendo importante, a sua dor continua sendo considerada e a gente tá aqui, o Flamengo não te abandonou". Mas nem todos eles se mantiveram acessíveis - disse Michelle Rizkalla.

Clube contrata empresa para auxiliar funcionários

Além dos garotos da base, havia funcionários do clube no Ninho no dia da tragédia. Eles e os que também não estavam presentes participaram de uma triagem interna e, quem demonstrou interesse, passou por acompanhamento psicológico. Para isso, o clube contratou uma empresa.

Até agora, há quase um ano da tragédia, alguns funcionários ainda participam de sessões duas vezes por semana. Outros já receberam alta. Na volta ao trabalho depois do incêndio, houve uma apresentação aos profissionais do clube com o objetivo de unirem forças para, juntos, superarem o que estava por vir.

- Nenhum ser humano, por mais forte que seja emocionalmente, está preparado ou já tem os recursos para reagir de uma forma satisfatória diante uma situação tão grave. Então, o nosso trabalho a partir dessa data foi trabalhar do luto à luta. Nosso foco não foi o esquecimento, mas olhar para o passado e pensar no que fazer com aquilo que viveu, porque as crises são oportunidades de fortalecimento. A gente pôde desenvolver a capacidade de resiliência. Tanto nos discursos quanto na própria prática, eles conseguiram aplicar.

A psicóloga Michelle Rizkalla disse ainda que uma das estratégias foi resgatar o orgulho de estarem no Flamengo.

- Queríamos resgatar a identificação desses funcionários com o clube. Com o acontecimento, o nome do Flamengo ficou muito associado à tragédia. Só que o Flamengo é um clube onde todo mundo que trabalha com futebol deseja estar. Então, resgatamos através de memórias os sonhos dos funcionários. Assim, resgatamos essa conexão de como é bom ser Flamengo.

No dia 8 de fevereiro de 2019, havia 26 atletas no Ninho do Urubu. Dez morreram, três ficaram feridos e 13 conseguiram escapar ilesos. Cinco destes 13 não tiveram seus contratados de formação renovados para esta temporada. São eles: Felipe Cardoso, João Victor Gasparín, Naydjel Calleb, Wendel Alves e Caike Duarte.

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Tópicos: flamengo, clube, meninos